Infarmed está a preparar a
regulamentação da nova lei sobre canábis medicinal, mas continua a apreciar
pedidos de licença de produção de canábis de acordo com as regras de 1994. Tem
seis pendentes, mas há mais na calha. E dezenas de empresas nacionais e estrangeiras
interessadas.
O Diário de Notícias de
Portugal, falou com algumas empresas. E descobriu que a primeira empresa
licenciada não está a produzir.
"A conjugação que existe
em Portugal de fatores estratégicos favoráveis ao cultivo de canábis é muito
especial. Está dentro do espaço Schengen, tem uma mão de obra altamente
qualificada e a preços imbatíveis, é um dos países da Europa com mais horas de
sol por dia e dias de sol por ano, o que é extremamente importante para a
canábis (quanto mais dias de sol houver mais colheitas são possíveis durante o
ano), e áreas agrícolas grandes irrigáveis a preços altamente concorrenciais.
Esta conjugação só existe em Portugal, e eventualmente na Grécia e em
Chipre."
Quem o diz é um dos
empresários que está a candidatar-se a uma licença de cultivo e que tem larga
experiência no setor, nomeadamente no Canadá. A ideia é avançar com uma área de
cultivo de três hectares, correspondendo a um investimento de milhão e meio de
euros, e depois, se correr bem, expandir para 30 hectares. "O preço dos
óleos e extratos de canábis no mercado é muito alto, não é preciso muita área
de cultivo para ser rentável. Aliás, se se puder fazer transformação, a partir
de dois hectares é viável financeiramente", explica. "Já para vender
em bruto é preciso ter mais área."
Aos fatores estratégicos
pré-existentes no país juntou-se agora, desde julho, a legalização da
prescrição de canábis medicinal e sua produção e transformação para o mercado
nacional, através da lei 33/2018 de 18 de Julho, que entrou em vigor este mês.
Tal naturalmente contribui para intensificar o interesse no negócio: Laura
Ramos, da Cannapress, o site de informação da Cannativa - Associação de Estudos
sobre a Canábis, contabiliza em pelo menos 30 os pedidos de informação sobre o
licenciamento da produção da planta que lhe chegaram no último ano. "Fomos
contactados por dezenas de pessoas e empresas que querem perceber como podem
fazer uma plantação. E aumentou muito a procura por estrangeiros."
Recentemente, relata, "falámos com ingleses, canadianos, franceses,
uruguaios, colombianos.
Há gente do mundo inteiro
interessada na possibilidade de produzir canábis em Portugal." O Infarmed,
que é o organismo que superintende todo o processo, competindo-lhe autorizar o
licenciamento, não tem tido, afiança Laura, "mãos a medir". Até ouviu
dizer que "vai ser criado um departamento só para a canábis" -
possibilidade que a lei 33/2018 prevê, por atribuir ao regulador do medicamento
e dos produtos de saúde as funções de "regular e supervisionar as
atividades de cultivo, produção, extração e fabrico, comércio por grosso,
distribuição às farmácias, importação e exportação, trânsito, aquisição, venda
e entrega de medicamentos, preparações e substâncias à base da planta da
canábis destinadas a uso humano para fins medicinais."
Vai haver quotas de produção?
O DN contactou com vários
interessados na produção de canábis, portugueses e estrangeiros, dois dos quais
estão já em fase de entrega de documentos. Nenhum, porém, faz parte dos seis
que, de acordo com informação prestada pelo Infarmed ao jornal, estão
atualmente em fase de apreciação com vista à concessão ou não de licença. Estes
pedidos dizem respeito a duas operações de transformação e quatro de cultivo,
sendo que "alguns destes com possível transformação numa fase
posterior", esclarece o regulador.
"Aumentou muito a procura
por estrangeiros. Falámos com ingleses, canadianos, franceses, uruguaios,
colombianos. Há gente do mundo inteiro a interessar-se pela possibilidade de
produzir canábis em Portugal."
Estando a nova lei ainda em
fase de regulamentação - a qual está também a cargo do Infarmed e decorre nos
60 dias após a publicação do diploma, ou seja, deverá ser conhecida a 17 de
setembro --, os processos em curso têm estado a ser instruídos com base
na regulamentação em vigor, de 1994.
Uma vez que os requerentes são
obrigados a informar sobre a área de cultivo do projeto, o DN quis saber qual o
total respeitante aos pedidos em tramitação. Mas o organismo diz não "ser
possível avançar com valores [de área de cultivo prevista] sem o licenciamento
concluído", por "existirem apenas algumas estimativas não
fechadas". Também adianta que, apesar de a regulamentação de 1994 prever o estabelecimento de
quotas anuais quanto "à quantidade de substâncias que podem ser fabricadas
e postas à venda pelas entidades autorizadas", e de haver entre os
candidatos quem acredite que haverá um limite ao número de licenças concedidas,
não está para já prevista essa possibilidade.
Admite porém que, "sendo
Portugal um membro das Nações Unidas e tendo ratificado as convenções únicas
sobre o controlo de estupefacientes e psicotrópicos [referência às três convenções da ONU que proíbem a produção,
distribuição, venda e consumo de uma série de substâncias, conhecidas como
"drogas"]", isso possa vir a verificar-se, por estar
"sujeito a recomendações emanadas no que respeita a eventuais limitações à
área a cultivar."
"Há muitos estereótipos
negativos"
E decerto, crê o investidor
entrevistado pelo DN -- que prefere não ser, nesta fase, identificado -, os
requisitos vão mudar: "A lei antiga não era muito exigente. Muito
provavelmente a nova legislação trará um agravamento pesado." Aliás,
afiança, ao longo do último ano a "check list" de requisitos exigidos
pelo Infarmed tem vindo a mudar. "Ultimamente já pedem licença dada pela
autarquia, o que é muito estranho porque a lei não mudou."
"Neste setor, tudo é
difícil, mais difícil do que em qualquer outro setor. Há muitos estereótipos
negativos relacionados com a canábis e a canábis medicinal."
Uma informação que o Infarmed
parece corroborar. À pergunta do DN sobre se a tramitação dos pedidos de
licenciamento está a decorrer de acordo com a legislação em vigor ou se o
processo foi suspenso até à publicação da nova regulamentação, o regulador
responde que "continuam ser processados de acordo com os requisitos
previstos na anterior legislação, os quais se irão manter, mas adicionalmente
são exigidos os novos requisitos que irão resultar da futura legislação, os
quais se destinam a clarificar e aprofundar disposições legais já previstas na
legislação anterior." Mas a questão do DN sobre quais os requisitos
respeitantes à nova regulamentação que estão já a ser impostos fica sem
resposta: "A regulamentação que está em curso engloba diversos aspetos da
lei, além do cultivo, que ainda estão a ser trabalhados, nomeadamente as
questões relacionadas com a prescrição médica.
Na área específica da
produção, a regulamentação vem sobretudo detalhar todo o processo e documentos
a apresentar, embora estes já fossem exigidos nos processos licenciados e em
curso. Passa também a prever, de forma mais clara, a articulação existente
entre os diversos ministérios. Na análise dos pedidos, considerando a amplitude
da legislação de 93 e 94, já são exigidos requisitos relacionados com as
instalações, equipamentos, procedimentos, segurança, idoneidade (da empresa,
sócios, gerentes, responsável técnico, agricultores), origem do material
vegetal e destino do produto, boas práticas agrícolas, de fabrico, de
distribuição, entre outros."
"A lei antiga não era
muito exigente. Muito provavelmente a nova legislação trará um agravamento
pesado."
O Infarmed esclarece também
que nunca recusou licenciamento nesta área, mesmo se só há duas licenças
atribuídas. Ou seja, concedeu as que foram pedidas. Mas Brendan Keneddy, CEO
da Tilray, uma das
empresas que a obtiveram, disse em novembro de 2017, numa entrevista
à Cannapress, que, apesar de no governo português todos se terem mostrado
"muito abertos, muito disponíveis e profissionais", foi "um
processo difícil e demorado". "Neste setor, tudo é difícil, mais
difícil do que em qualquer outro setor", comenta. "Há muitos estereótipos
negativos relacionados com a canábis e a canábis medicinal. Portanto, tivemos
de convencer... Temos sempre de convencer pessoas, quer se trate de
investidores, legisladores, entidades reguladoras, dirigentes eleitos,
embaixadores, de que este é o momento certo para apostar neste setor."
Primeira licença nunca foi
usada?
Constituída em abril de 2017,
a Tilray Portugal - as empresas candidatas têm de ter, frisa o Infarmed,
"existência jurídica no território nacional" - obteve licenciamento
em julho do mesmo ano e iniciou a plantação em outubro. Este mês, anunciou
a contratação de 100 técnicos para a sua unidade de
transformação, parte de um plano de investimento de 20 milhões de euros até
2020. Com origem no Canadá, onde produz canábis medicinal desde 2014, a empresa
está sediada em Cantanhede (Coimbra), onde tem quatro hectares para estufas e
produção ao ar livre.
Antes da Tilray só houvera em
Portugal uma outra autorização de produção de canábis medicinal, em 2014, à
empresa Terra Verde. Esta foi autorizada, explicou na altura o Infarmed ao
Público, "para o cultivo de cannabis sativa em Portugal, para realizar um
projecto de investimento que consiste na plantação de cannabis sativa e a sua
transformação em pó que será exportado 100% para o Reino Unido e utilizado para
a produção de medicamentos a utilizar no alívio da dor derivada da doença
oncológica, na esclerose múltipla e na epilepsia".
"Que eu saiba a Terra
Verde, a primeira empresa a ter licença para plantar canábis medicinal, nunca
produziu. Porque o laboratório que era suposto comprar a produção, a GW
Pharmaceuticals, nunca comprou."
Mas aquela que foi a estreia
deste género de concessão em Portugal não está a ser utilizada: sediada em
Alcochete e propriedade do luso-israelita David Yarkoni, conhecido como
produtor de flores e desde 1986 a viver em Portugal, a Terra Verde não
produziu, segundo o Infarmed, canábis em 2018 - o que em princípio, nos termos
da lei em vigor, determina a perda da licença.
O DN não conseguiu efetuar
qualquer contacto com a Terra Verde nem com Yarkoni, mas o empresário Ângelo
Correia, que se identifica como amigo de Yarkoni, assevera que este nunca
chegou a fazer o cultivo da planta: "Que eu saiba nunca produziu.
Porque o laboratório que era
suposto comprar a produção, a GW Pharmaceuticals [farmacêutica britânica que
tem a patente de dois medicamentos à base de canábis, o Sativex e o Epidiolex,
este último recém licenciado nos EUA e ainda a aguardar licenciamento na Europa],
nunca comprou. Nisto não é só importante ter autorização
para produzir, é preciso que haja quem assuma a responsabilidade de
comprar."
"Tem de haver um cliente
garantido para que o cultivo tenha destino numa entidade", confirma outra
empresária contactada pelo DN, que está ainda, diz, "em fase de entregar
os documentos". A empresa, que prefere para já não ser identificada nem
revelar o valor do investimento, está há um ano e meio a instruir o processo e
tem vários locais em vista para o cultivo. "Ainda não comprámos, porque
primeiro queremos ter a licença." A ideia é produzir para exportação e não
para o mercado interno, hipótese que de resto só existe desde que a canábis
medicinal "passou" no parlamento. Assim, os seis pedidos que deram entrada
até agora no Infarmed terão em princípio a exportação como propósito. As
licenças relativas a produção para o mercado nacional só deverão ser concedidas
a partir da entrada em vigor da nova regulamentação, que segundo o Infarmed
estará pronta no período aprazado.
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