A Folha de São Paulo publicou
hoje(2) reportagem da colunista Cláudia Collucci, com um dos temas mais
nevrálgicos, que acarretam inevitável e gravoso impacto político e econômico no
sistema de saúde pública, comprometem significativamente o planejamento e o
orçamento do SUS. As judicializações de medicamentos, em geral, importados sem
registro na ANVISA. A Advocacia-Geral da União aponta que, de 2007 a 2018, os
gastos da União cresceram 4.600%, com a judicialização da saúde.
Contradição que distorce as responsabilidades
onde o judiciário é colocado em posição pouco confortável, muitas vezes se
sobrepondo, sem o imprescindível suporte técnico especializado, às políticas
preconizadas e normatizados do órgão, constitucionalmente, competente que é o
Ministério da Saúde, à quem são atribuídos os poderes para estabelecer os
procedimentos e medicamentos e insumos que passam a compor o portfólio do SUS,
objetivando garantir o acesso universal, garantido por Lei.
Por determinação judicial a
pasta é obrigada a disponibilizar medicamentos ou insumos judicializados, com
registro ou não na Anvisa, em curtíssimo espaço de tempo, em geral 48h o que
obriga o Ministério da Saúde a adquirir o produto, para cada paciente, sem
licitação.
O artigo aborda um estudo
realizado com base no medicamento eculizumabe, marca Soliris da Alexion
Pharmaceuticals, um anticorpo monoclonal usado no tratamento de doenças raras
para amenizar complicações de pacientes adultos e pediátricos com duas doenças
raras, a hemoglobinúria paroxística noturna (HPN) e a síndrome
urêmico-hemolítica atípica (SHUa).
O tratamento, no período de 11
anos, custou ao SUS R$ 2,44 bilhões. A literatura cita o tratamento como o mais
caro do mundo, em média US$ 410 mil por paciente/ano nos EUA em 2010. No
Brasil, o custo de tratamento para um paciente com prescrição judicalizada,
ultrapassou os R$ 800 mil em 2012. Os pesquisadores, descrevem que a variação
no preço médio, que em 2016 chegou a atingir o valor de R$ 27.933,76 e depois
do registro, e a publicação do preço CMED máximo de venda ao governo ficou
abaixo de 13.600,90.
Em 2017, durante a gestão do
então Ministro Ricardo Barros foi realizada uma auditoria no processo de
compras judicializadas, cujos resultados motivaram a denúncia junto a Polícia
Federal que deflagrou a Operação Cálice de Hígia, para investigar possíveis
fraudes ligadas ao processo de obtenção da judicialização.
Avaliando 514 ações judiciais,
que demandavam o medicamento, tento o MS como réu, entre 2010 e 2016, os
pesquisadores encontram 376 (73%) originadas no Distrito Federal e 46 (9%)
tiveram origem no estado de São Paulo. Apenas um único escritório de advocacia
foi responsável por 361 processos (70%). As prescrições geradas a partir dos
médicos particulares e do SUS são semelhantes (respectivamente, 32,4% e 31,2%),
com destaque para 27,1% das ações, que sequer constava o nome e registro do
prescritor.
A denúncia a Polícia Federal
foi realizada a partir dos resultados apurados na auditoria do MS. Das 414
decisões judiciais em 2017, aproximadamente a metade dos pacientes, não
apresentava provas de diagnóstico da doença, mas recebiam o medicamento, 28 não
foram localizadas; cinco não residiam no endereço informado; seis se recusaram
a prestar informações e 13 já tinham morrido, o que provavelmente tenha
motivado a significativa queda de processos em 2018, praticamente 50% da
demanda anual em relação ao ano anterior.
Infelizmente, no Brasil, assim
como em outros lugares do mundo, empresas inescrupulosas, pouco éticas,
praticam “um pseudo marketing agressivo” que muitas vezes deturpam e mascaram
as relações com alguns grupos de defesa dos pacientes e profissionais de saúde
como estratégia para expandir seus negócios, pela judicialização. Mecanismo
também utilizado indevidamente para forçar a incorporação do medicamento no
sistema único de saúde.
A reduzida disponibilidade de
laboratórios de referência, independentes, capacitados, com acesso às
metodologias e padrões necessários às especificidades e às complexidades de
realizar um diagnóstico assertivo para as doenças raras é outra fonte que
alimenta potenciais relações “mascaradas” com algumas Associações e Grupos de
Pacientes com apoio dos detentores dos produtos. Infelizmente, no País,
medicamentos não registrados estão fora da abrangência da ANVISA, é
o próprio laboratório que lança, apresenta e “convence os prescritores”
sobre os mecanismos de atuação, eficácia e segurança do produto.
Ocorre que, muitas vezes, ao
invés de garantir tais resultados com os tratamentos, eles estão, na verdade,
agravando doenças, haja vista se tratarem de medicamentos desnecessários,
inválidos para alguns pacientes, e, sem aprovação dos órgãos competentes
(ANVISA, ANS, Ministério da Saúde, INCQS, etc.), além de, muitas vezes, não
possuírem eficácia assegurada para aquela determinada tipo ou estágio da
doença.
Não seria justo encerrar este
artigo sem registrar que o Direito Sanitário vem ganhando cada vez mais
importância no mundo jurídico, em razão da crescente judicialização da saúde,
induzindo o desequilíbrio do Sistema Único de Saúde, o que preconiza a
necessidade de capacitação dos operadores do Direito, na matéria. De maneira
geral as decisões proferidas deixam de levar em consideração a distribuição de
competências estabelecidas, a limitação dos recursos públicos empregados, além
da chamada “Medicina Baseada em Evidências”, a qual foi objeto da STA no 175,
do Supremo Tribunal Federal.
No sistema democrático cada
ente possui o seu papel constitucional, o julgador tem a atribuição de fazer
com que a Lei seja rigorosamente cumprida, mas é competência do gestor executar
as políticas públicas, e no sistema federativo descentralizado essas
competências são dos Estados, Municípios e do Distrito Federal que precisam
levar em consideração as limitações políticas e orçamentárias. Cabe ao gestor a
governança orçamentária para garantir as escolhas mais justas possíveis,
ampliando o acesso ao maior número de pacientes, perante os limitados recursos
existentes, em cumprimento aos princípios da universalidade e da integralidade.
O Supremo Tribunal Federal,
quando do julgamento da STA no 175, reforçou que é preciso que o Poder
Judiciário verifique a existência de evidências científicas, bem como examine o
rol constante nas políticas públicas de saúde, quando da análise do caso
concreto, mas se certificar da real necessidade de se escolher o tratamento
requerido em detrimento dos protocolos e diretrizes do Sistema Único de Saúde.
Os efeitos da judicialização
da saúde no Brasil ainda carecem da mais ampla discussão, entre os poderes
Legislativo e Executivo, e no próprio Poder Judiciário, buscando alcançar o
maior e mais amplo acesso de toda população ao SUS, dentro do orçamento disponibilizado,
sem a interferir no próprio sistema que, busca atender à população mais
necessitada, privilegiando o coletivo.
Quanto aos desvios, cabe a
Polícia Federal investigar as denúncias e dar andamento aos processos, já
identificados. para que o País possa, a cada dia mais, consolidar a confiança
nas instituições punindo exemplarmente os que deturpam e mascaram a atividade
fundamental de preservar a saúde e a qualidade de vida das pessoas, com
condutas ilegais e imorais que comprometem o orçamento, destinado a saúde
pública coletiva, em favor de algumas empresas inidôneas.
A reportagem citada pode ser
encontrada, em anexo.
Anexo:
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