A polémica em torno do
glifosato - herbicida classificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como
potencialmente carcinogénico - parece estar cada vez mais longe do fim. Agora,
novos dados revelam que os especialistas contratados pela União Europeia (UE)
para avaliar o herbicida mais usado no mundo copiaram uma grande quantidade de
informação dos relatórios produzidos pela indústria. Uma revelação que
reacendeu a discussão, já que foi esse documento que serviu de base à renovação
da autorização do composto por mais cinco anos, em 2017, na UE. Contudo, apesar
das acusações, a Comissão Europeia decidiu manter o herbicida autorizado até
2022.
É mais um capítulo na novela
do glifosato, que nos últimos anos tem sido notícia por diversas vezes, e nunca
por boas razões. No ano passado, por exemplo, um tribunal de São Francisco, nos
EUA, condenou a Monsanto (comprada pela Bayer), que comercializa o produto, a
pagar 290 milhões de dólares (255 milhões de euros) por esconder os perigos do
herbicida Roundup (à base de glifosato), que terá estado na origem do cancro
desenvolvido por um jardineiro. Uma indenização posteriormente reduzida, mas
que provocou danos elevadíssimos na imagem e nas contas da gigante alemã.
Recentemente, o glifosato
voltou à ribalta, depois de o Le Monde ter revelado dados que, segundo algumas
vozes, colocam em causa a autorização do uso do produto na União Europeia. Mais
de um ano e meio depois da votação que permitiu prolongar a sua autorização até
2022 - medida aprovada com 18 votos a favor, nove contra, e abstenção de
Portugal -, o grupo de peritos alemães (do Bundesinstitut für
Risikobewertung - BfR) contratado pela UE para avaliar os riscos do uso do
glifosato é acusado de ter copiado e plagiado o dossiê de homologação produzido
pela Monsanto e outras indústrias e entregue às autoridades europeias.
Usando um programa informático
que deteta plágio, o especialista austríaco Stefan Weber e o bioquímico Helmut
Burstcher, da ONG Global 2000, descobriram que nos capítulos que tratam
da avaliação de estudos publicados sobre riscos para a saúde relacionados com o
glifosato mais de 50% da informação foi plagiada e 70% resulta de copy
paste. Já no capítulo sobre os estudos da indústria, a percentagem de
informação copiada ascende aos 81,4%. Entre outras coisas, há avaliações
copiadas na íntegra dos relatórios da indústria e apresentadas como avaliações
das autoridades. E foi com base nesse documento que a Autoridade
Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA) e os peritos dos Estados membros
decidiram que o glifosato não podia ser associado diretamente ao risco de
cancro.
Bruxelas mantém autorização
As primeiras dúvidas sobre o
relatório do BfR surgiram em 2017, quando foi denunciado que alguns
subcapítulos do documento teriam sido copiados integralmente de documentos da
indústria. Numa resposta enviada ao DN por e-mail, Aikaterini
Apostola, porta-voz da Comissão Europeia na área da saúde e segurança
alimentar, adianta que "tendo em conta o exame cuidadoso e extensivo de
todas as informações, bem como a análise das alegações sobre a qualidade do
trabalho", "não existem motivos fundamentados para pôr em
causa as avaliações e conclusões científicas sobre o glifosato realizadas na
União Europeia".
De acordo com a mesma fonte, a
conclusão da EFSA (Autoridade Europeia da Segurança Alimentar) e da ECHA
(Agência Europeia dos Produtos Químicos), que considera que o glifosato não
deve ser classificado como carcinogénico, "está em linha com as
conclusões de muitos outros organismos reguladores", dentro e fora da
União Europeia. Já em 2017, recorda, tanto a EFSA como a BfR rebateram as
acusações de plágio.
Contactada pelo DN, a EFSA diz
que, tal como a BfR, "rejeita as alegações" sobre plágio e defende a
"integridade" dos seus processos de avaliação de risco e as suas
conclusões sobre este herbicida. "O relatório não fornece nenhuma
informação científica nova que ponha em causa a avaliação e as conclusões do
glifosato", sublinha. No entanto, reconhece ser necessária mais
clareza na forma como os Estados membros compilam a informação das suas
avaliações.
Em comunicado, também a BfR
nega as acusações de plágio, explicando que, na Europa, é prática comum na
avaliação de pesticidas integrar passagens dos documentos da indústria
produtora, desde que a informação "esteja tecnicamente correta". Isso
não implica, sublinha, aceitar as suas conclusões, pelo que garante que os interesses
de indústrias, políticos ou outros não foram tidos em conta na avaliação.
Rejeita, assim, qualquer acusação de fraude.
Ambientalistas apelam ao fim
da sua utilização
Uma grande parte da polémica
em torno deste produto, comercializado desde os anos 70, reside no facto de não
existir consenso quanto aos perigos que pode representar para a saúde. Em março
de 2015, a Agência Internacional para a Investigação sobre o Cancro
(IARC), um órgão da OMS, classificou o glifosato como potencialmente
carcinogénico para os seres humanos, mas também existem muitos estudos, bem
como entidades oficiais (EFSA e ECHA, por exemplo), que garantem que é inócuo.
Para as associações
ambientalistas, parece não existirem dúvidas, pelo que têm sido das vozes mais
ativas contra o herbicida que é não só o mais usado em Portugal como também na
Europa e no mundo. Perante as acusações de plágio, os ativistas voltam a pedir
a proibição do glifosato.
Lembrando que é comum existir
"contaminação" de relatórios oficiais com posicionamentos da
indústria, Francisco Ferreira, presidente da Zero - Associação Sistema
Terrestre Sustentável, considera que "há evidências suficientes
para, tendo em conta o princípio da precaução - as dúvidas levantadas e o
impacto ambiental e na saúde -, proibir o glifosato". "Se houve
uma forte influência da indústria, é dramático do ponto de vista da decisão
final", lamenta.
Para o professor
universitário, "face ao desvio dos dados transmitidos, e tendo em conta
que a decisão foi mal informada, a reavaliação do produto deve ser feita antes
da data prevista" (2022).
Margarida Silva, uma das
coordenadoras da Plataforma Transgénicos Fora, defende que, atendendo aos novos
dados, urge "ativar mecanismos para suspender a autorização do
glifosato. É uma questão básica de credibilidade europeia". Na opinião
da bióloga, "se tivesse sido feita uma avaliação rigorosa, independente e
científica, provavelmente teriam chegado à mesma conclusão do IARC".
"Todo o processo político de reautorização se baseou no pressuposto
científico de que o glifosato não faz mal à saúde nem ao meio ambiente. Só foi
autorizado porque havia validação científica da sua inocuidade", critica.
Uma posição semelhante é assumida
pela Quercus - Associação Nacional de Conservação da Natureza, que também
defende que o glifosato deve ser "proibido para qualquer
utilização urbana e na agricultura". "Esta situação é
preocupante, porque é mais um sinal de que a UE leva pouco a sério as questões
ambientais e da saúde", diz ao DN o presidente da estrutura. Para João
Branco, a renovação da licença prende-se, essencialmente, com questões
económicas. "Há setores da agricultura com uma influência forte, que não
querem acabar com o glifosato, pois este torna certas operações agrícolas mais
baratas", adianta, destacando que "nos pomares e nas vinhas é
bastante utilizado em Portugal".
As restrições são suficientes?
Em 2017, o Conselho de
Ministros aprovou a proibição do uso de fitofármacos em espaços públicos em
Portugal. Desta forma, a aplicação de produtos como o glifosato ficou
proibida em jardins, parques de campismo, hospitais e centros de saúde, lares
de idosos e escolas, podendo as penalizações por violação das regras
ascender aos 22 mil euros. Embora o setor agrícola seja o que mais utiliza o
produto, nestes espaços há uma preocupação acrescida, devido à exposição da
população.
Esta alteração veio, segundo o
deputado Jorge Costa, do Bloco de Esquerda, no seguimento de uma proposta do
BE, apresentada em maio de 2016, e chumbada com votos contra de PSD, PCP e CDS,
que pretendia restringir a utilização do herbicida pelas câmaras municipais.
Mas não estará a ser cumprida por todos os municípios. "Temos a
informação de que, apesar dessa proibição, há muitas autarquias que continuam a
usar o glifosato em espaços urbanos, porque a fiscalização é muito
reduzida", denuncia o deputado.
Para Jorge Costa, os dados
divulgados na semana passada "mostram que é necessário voltar ao tema do
glifosato e das restrições à sua comercialização. Esperamos que a Comissão
Europeia o possa fazer entretanto, mas isso não impede que cada país não possa
tomar as deliberações que entender". Para o BE, este é um produto que
"deve ser eliminado do comércio e da produção, eliminado para todos os
fins". Por isso, avança, o partido "vai levar este assunto ao
Parlamento, para que a lei portuguesa seja mais forte, robusta e procure
encontrar consenso para a eliminação e substituição destes produtos na
agricultura e no espaço urbano".
Contactado pelo DN, o
Ministério da Agricultura diz que "não estão previstas outras
alterações" à legislação, lembrando que, "além de tomar a decisão de
proibir a utilização de glifosato em espaços públicos, o governo foi o primeiro
executivo da União Europeia a proibir a utilização de taloamina, um coadjuvante
do herbicida que revelou propriedades carcinogénicas". Por outro
lado, o gabinete de Luís Capoulas Santos sublinha que "os aplicadores de
produtos fitofármacos, para além de terem formação, utilizam equipamentos de
proteção específicos".
Desde a publicação do
Decreto-Lei n.º 35/2017, de 24 de março, a Quercus recebeu cerca de 20
denúncias sobre o herbicida. "Costumam estar relacionadas com a aplicação
nos passeios e bermas de estradas, porque a lei refere que tem de haver acesso
restrito durante 24 anos, mas as pessoas têm de passar por algum lado. Houve um
ou outro caso relacionado com um jardim de um supermercado e outro num
estabelecimento de ensino", esclarece Alexandra Azevedo, veterinária e
ativista.
13 municípios sem glifosato
Até ao momento, apenas
13 municípios (são 308, no total) e 23 freguesias aderiram ao manifesto
Autarquia sem Glifosato/Herbicidas, comprometendo-se a abandonar o
herbicida cujo uso tem aumentado, como se lê no documento, "devido à
proliferação das culturas transgénicas (OGM) que lhe são tolerantes".
Desta forma, assumem a responsabilidade de deixar de o usar não só nos espaços
públicos como em todos os outros terrenos camarários.
Alexandra Azevedo reconhece
que podem existir outros que tenham abandonado o seu uso, mas que não tenham
assinado o manifesto. "Vários municípios estão a procurar alternativas um
pouco por todo o país. Há situações em que primeiro testam soluções e só depois
assinam o manifesto. Estas notícias são boas para manter o alerta",
refere. Quanto às alternativas, reconhece que "não existem
soluções-milagre", mas é preciso pensar em "abordagens abrangentes",
que passam, em certa medida, pela alteração de mentalidades e aceitação das
ervas.
A indústria mantém a garantia
de que este é um produto seguro. Contactado pelo DN, António Lopes
Dias, diretor executivo da Associação Nacional da Indústria para a Proteção das
Plantas (ANIPLA), sublinha que, "enquanto não houver uma base credível que
diga o contrário, o glifosato é um produto tão seguro como qualquer outro
autorizado". Se existissem dúvidas, assegura, "a indústria era a
primeira a retirar o produto do mercado".
Atualmente, diz o
representante, "existem substâncias que se aproximam, mas, efetivamente
e infelizmente - porque a agricultura podia ter outras soluções para gerir
resistências -, ainda não foi descoberta nenhuma que reúna as características
do glifosato". Refere-se à relação qualidade-preço. "Além de ser
um produto barato, não deixa resíduos no solo, é degradado pela flora
microbiana do solo, e penetra pelas partes verdes das plantas e elimina-as até
à raiz", afirma.
As alternativas que existem
atualmente não são "tão baratas e tão fáceis de aplicar como o
glifosato", reconhece a bióloga Margarida Silva. Contudo, sublinha, já são
usadas na agricultura biológica e podem ser implementadas "se os
agricultores forem apoiados". Questionada sobre as opções disponíveis,
refere, por exemplo, "um herbicida biológico [que já está
autorizado em Portugal] e a limpeza de ervas e infestantes com alternativas
como a monda manual, mecânica ou térmica". Além disso, é necessário
"tornar as ervas compatíveis com a circulação das pessoas".
Ouvida pelo DN, a Confederação
Nacional da Agricultura (CNA) manifestou algumas reservas em relação às
alternativas que podem surgir. "É necessário continuar a usar
herbicidas. A que custo vem o sucedâneo? Se for muito caro, os agricultores vão
procurar os produtos ao mercado negro. Quem está descapitalizado vai
para o mais barato", diz João Dinis, presidente da CNA, destacando que os
herbicidas biológicos "são muito mais caros". Na opinião do
representante, o período de cinco anos "permite à indústria, aos
agricultores e aos comerciantes ter tempo para arranjar uma alternativa".
Em 2016, a Plataforma
Transgénicos Fora analisou 26 voluntários (22 da região do Porto e quatro de
Tomar) para testar o nível de contaminação por glifosato, e os
resultados acusaram uma contaminação 20 vezes superior à média de outros países
da União Europeia, mas não se encontraram explicações para os valores. Não
se sabe se a contaminação aconteceu através de alimentos, água ou de outra
forma. Nos próximos dias serão revelados os dados das análises feitas em 2018.
Na semana passada, o Le
Monde acusou a Monsanto de recorrer a empresas externas que empregam
pessoas sem aparente ligação com a indústria para fazerem comentários positivos
nas redes sociais, de forma a defender a empresa e os seus produtos.
Joana Capucho - Diário de
Notícias - PT
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