Por Hora do Povo
Eduardo Costa, professor da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) Fotomontagem HP
“Se não houver a direção
industrial no processo, nós não conseguimos inovar. Os projetos ficam nas
bancadas. Quase todas as vacinas que foram usadas no passado, até 1964, eram
vacinas desenvolvidas dentro do país. O Butantan, ao retomar esse processo, está
de parabéns”, assinalou o professor da Fiocruz, que acrescentou: “Não dá para
ter inovação tecnológica no Brasil sem ter uma indústria nacional forte”
O médico sanitarista Eduardo
Costa, professor da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Osvaldo Cruz
(Fiocruz), ex-secretário de estado da Saúde do Rio de Janeiro, no governo
Leonel Brizola, e ex-diretor da Farmanguinhos, comentou neste sábado (27), em
entrevista ao HP, o anúncio, feito pelo Instituto Butantan, de São Paulo, do
desenvolvimento e a produção no Brasil de uma nova vacina contra a Covid-19, a
ButanVac, com tecnologia desenvolvida pelo instituto, em associação com outros
órgãos.
“O anúncio desse
desenvolvimento, de uma vacina do Butantan, tem algumas características
especiais, é muito interessante, mas, de qualquer modo, ainda falta saber mais
detalhes sobre essa tecnologia, porque vivemos em tempos de sobrevalorização do
marqueting e de corrida midiática”, disse o professor.
Eduardo Costa (Foto:
Reprodução do youtube)
“O que nós estamos vendo é que
esta iniciativa usa uma tecnologia de multiplicação do antígeno em ovos, o que
várias vacinas usam, como a da gripe. Com isso há a capacidade de produzir uma
quantidade grande, ou de vírus inativado mesmo ou do vetor viral modificado. Há
alguns detalhes que eu ainda não peguei, no que foi divulgado na imprensa”,
prosseguiu Costa.
O professor da Fiocruz
considera que “isso significa bastante coisa para a Saúde Pública brasileira”.
Eduardo Costa lembra que “quase todas as vacinas que foram usadas no passado,
até 1964, eram vacinas desenvolvidas dentro do país”. “E isso incluiu até mesmo
uma delas na qual tivemos uma grande colaboração de americanos, com o antígeno
(seed) sendo originário da Austrália mas desenvolvida aqui no Brasil na década
de 30, no então Instituto Oswaldo Cruz, que foi a vacina para a febre amarela”,
destacou.
“Quase todas as vacinas que
foram usadas no passado, até 1964, eram vacinas desenvolvidas dentro do país”
Eduardo acrescentou que foi o
Instituto Osvaldo Cruz, lembrando que foi o precursor da Fiocruz que produziu
muitas outras vacinas. “Ele desenvolveu, lá naquele tempo passado, também
vacinas para uso veterinário, como para a manqueira (doença bovina causada pela
bactéria Clostridium Chauvoei). Antes, já produzíamos a vacina anti-variólica,
por exemplo.”, explicou.
“Mais recentemente”,
prosseguiu Eduardo Costa, “começou uma moda de importar tecnologia de grandes
empresas multinacionais, substituindo as que nós tínhamos e não colocando, na
verdade, um produto novo, ainda que possa ter ganhos de economicidade ou
reatogenicidade, ao absorverem inovacões incrementais”. “Por isso nós vemos com
destaque essa questão do Butantan desenvolver a produção da vacina a partir da
semente, quer dizer, aparentemente, desde o início”, assinalou.
“Pelo que foi depois
divulgado, essa semente foi desenvolvida nos laboratórios do Mount Sinai dos
Estados Unidos, que cedeu gratuitamente e sem royalties, mas não apenas para o
Butantan. Isto já aconteceu antes e é um avanço tecnológico e na política
mundial de avançar em equidade no acesso a vacinas. Na gestão do Jorge Kalil ,
o Instituto adquiriu os antígenos para a vacina da Dengue do NIH e desenvolveu a
mesma, tendo patenteado o processo e desenvolvido estudos clínicos (fase III
ainda não concluída). No caso presente o vetor viral modificado é o vírus
Newcastle, de gripe aviária.
Costa acrescentou que há uma
observação importantes a fazer: “ ainda falta uma ligação orgânica da bancada
dos laboratórios com a indústria; a pesquisa nas universidades cresceu muito.
Tem muita gente atuando. Mas nós temos um problema. Precisamos de um projeto de
desenvolvimento nacional. Sem indústria nacional, ela (a ciência) não inova.
Quem vai aprovar e quem vai utilizar, no fundo, o que os nossos cientistas são
capazes de desenvolver, etc, vão ser outros países, porque isso aqui é uma
cadeia no mundo, especialmente entre universidades, onde circula o
conhecimento, as tecnologias e os equipamentos”, disse ele.
Para Costa, a capacidade de
produção é uma questão chave. “Se não houver a direção industrial no processo,
nós não conseguimos inovar. Os projetos ficam nas bancadas”, assinalou
Para Costa, a capacidade de
produção é uma questão chave. “Se não houver a direção industrial no processo,
nós não conseguimos inovar. Os projetos ficam nas bancadas”, assinalou.
Ele associou esse novo tipo de
processo de desenvolvimento, das pequenas startups, à onda neoliberal. “Um
modelinho assim onde todos os cientistas acham que vão se dar bem um dia. Não,
todos os cientistas vão ter que passar para uma multinacional, ou uma empresa
fora, o que eles fazem”, apontou. Ele ressaltou que o processo de
desindustrialização do país, agravado nos últimos vinte anos, piorou ainda mais
a situação e as perspectivas para as startups locais. “Elas não terão
capacidade de investimento para criar uma indústria, apesar de poderem
desenvolver até um novo produto”, denunciou Costa.
“Não dá para ter inovação
tecnológica no Brasil sem ter uma indústria nacional forte. E nós estamos neste
momento numa demonstração cabal disso. O Instituto Butantan usou, inclusive, de
uma maneira correta, a absorção de tecnologias de um modo soberano e ousou
também avançar no sentido de produzir a sua própria vacina, com as suas próprias
características, que eles acham que podem ser mais vantajosas para o Brasil. E
isso é que nós temos que saudar”, afirmou Eduardo Costa.
“Eu não tenho dúvida que, do
ponto de vista científico, hoje há muita cooperação, nós podemos, teoricamente,
desenvolver produtos. Na verdade, no entanto, especialmente nessa área que é
fundamental num país como o nosso, com uma população de 200 milhões de
habitantes, nós termos condições de produzir o que nós precisarmos para poder
atender a um SUS novo, renovado, no sentido de estar ligado no que é a
necessidade estratégica do país”, prosseguiu.
“Podemos consolidar uma área
de desenvolvimento industrial para apoiar as atividades de saúde. E não só nas
de vacinas, são vários fármacos diferentes que temos aí, especialmente os mais
caros hoje, que são quase sempre de origem biológica, com genética aplicada a
esse desenvolvimento”, apontou Costa.
“Então”, prosseguiu o
professor, “eu acho que nós temos que saudar esta iniciativa do Butantan,
porque os tempos bicudos que nós vivemos aí, de entreguismo a toda prova, o
Instituto levanta-se com alguma coisa digna de ser exemplar”. “Eu estou muito
feliz com essa decisão deles, com esse encaminhamento”.
“Eu acho que nós temos que
saudar esta iniciativa do Butantan, porque os tempos bicudos que nós vivemos
aí, de entreguismo a toda prova, o Instituto levanta-se com alguma coisa digna
de ser exemplar”
Eduardo Costa resgatou a
importância do Butantan para a ciência brasileira: “O Instituto Butantan é um
acervo nacional da melhor qualidade. Ele foi fundado por um homem que se
chamava Vital Brazil. Ele deu uma partida muito cedo, há mais de cem anos no
desenvolvimento de soros e outros produtos biológicos. A tradição nacionalista
do Instituto Butantan, nos anos recentes, foi muito alimentada por um outro
grande brasileiro, que foi seu diretor por muitos anos, Isaias Raw”, lembrou.
O professor conta que “Isaias
era combatente mesmo e, inclusive, fazia disso um instrumento de crítica, que
muitas vezes outras instituições do país da mesma área não gostavam, mas era
tudo pensado a partir da questão do desenvolvimento brasileiro. Essa tradição
aparentemente continuou”.
“É o que nós estamos vendo
agora: todas as instituições nacionais tiveram subidas e descidas na sua
história, nas conjunturas políticas econômicas, mas o Butantan tem estado aí
preocupado com as coisas do Brasil, desde acidentes com animais peçonhentos,
tem toda essa tradição. Apoiou, inclusive, a interiorização do Brasil, porque
era fundamental, no início da República”, observou.
“E depois, especialmente, com
os avanços que se obteve a partir de 30, com a marcha para o oeste, que deram
condições para que o Brasil progredisse e ocupasse seu território de uma
maneira produtiva. Então, é bela a história do Butantan e de outras
instituições brasileiras. Mas, como eu queria reforçar, há um destaque no
Butantan que é a defesa do desenvolvimento brasileiro autônomo”, acrescentou o
sanitarista.
“Hoje essa associação do
Butantan com a Sinovac, nós podemos chamar de uma associação virtuosa. Há
poucos dias, nós estávamos avançando não só na produção da vacina CoronaVac,
que não foi desenvolvida em pesquisa original no Brasil, mas foi usada
corretamente, inclusive porque vai também se apropriar dos modos dessa
tecnologia para a produção”, disse o professor.
“Essa associação do Butantan
com a Sinovac, nós podemos chamar de uma associação virtuosa”
“Existe uma tecnologia de
desenvolvimento de um germe para ser capaz de produzir o produto que queremos,
e, depois, na quantidade que queremos. Aí já é um processo industrial. Uma
parte é laboratorial e outra parte é industrial. Isso é muito importante porque
o Butantan claramente fez um acordo soberano com a China e isso está sendo
demonstrado”, argumentou Costa.
“Tem que ver mais do que o
simples fato, não é ufanismo, de que o Brasil é capaz. É uma estratégia
política correta em que a China não é um país que tem o interesse de abafar o
desenvolvimento brasileiro. Por isso, a Sinovac não fez restrições a que o Butantan
pudesse desenvolver outros produtos”.
“Eu digo que essa associação é
virtuosa porque ela permitiu que o Instituto coordenasse o estudo da fase 3,
não precisou que empresas estrangeiras viessem aqui para isso. O Butantan está
fazendo agora um estudo em Serrana que é exemplar para poder ver, numa fase 4,
como é que funciona a vacina. Lá na China essa associação virtuosa, como eu
estou chamando, nos dá notícia agora que a Sinovac já está testando em alguns
milhares de crianças de três a 18 anos a vacina para poder mostrar, sem maiores
problemas, que é segura, pois nós sabemos que vacinas de vírus inativado, como
essa, são frequentemente dadas em todas as outras doenças, em crianças também –
e elas têm capacidade de responder”, apontou.
“Eu quero valorizar o uso de
uma transferência tecnológica feita de maneira soberana. Isso é essencial. Se
não entendermos os termos dessa negociação, não vamos entender porque, por
exemplo, não foi boa a que fez a Fiocruz com a Astrazeneca. Por quê? Porque foi
fazer com a ‘big farma’, que asfixia e faz condições contratuais completamente
diferentes”, considerou Costa, para concluir: ”a minha ansiedade, conhecendo o
Brasil de hoje. é que esse porto novo nos Estados Unidos não esteja sendo
levado pelos que querem fechar a porta para a cooperação com a China.
SÉRGIO CRUZ
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