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sábado, 25 de abril de 2015

"Núcleo duro" dos governos Lula e Dilma barrou todas as iniciativas para repor o desfinanciamento do SUS

O desempenho das gestões Lula e Dilma, no que tocou às políticas públicas universalistas, ao contrário do almejado na histórica campanha eleitoral de 2002, segue essa mesma lógica e estratégia: permanece o referido “núcleo duro”, que barrou todas as iniciativas de repor pelo menos parte do desfinanciamento do SUS e impôs a PEC 358/2013, que reduziu mais ainda a parcela federal. Esta é a opinião do professor Nelson Rodrigues dos Santos. Ele concedeu entrevista à Página 13. O presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA) falou, sobretudo, a respeito da 15ª Conferência Nacional da Saúde.

Página 13. Resuma para nós: qual é o SUS dos seus sonhos, aquele pelo qual você vem lutando desde os anos 1970?

Nelsão. É o SUS que iniciou na acumulação de crescentes iniciativas municipais nos anos 1970, de atenção primária à saúde integral e equitativa em periferias urbanas, que com o convênio com a Previdência Social universalizaram para toda a população e se incorporaram ao Movimento da Reforma Sanitária Brasileira. Passa pela 8ª Conferência Nacional de Saúde, pela Comissão Nacional da Reforma Sanitária e pela Assembleia Nacional Constituinte. A Constituição de 1988 consagrou a Seguridade Social, os direitos de cidadania e o SUS universalista, sob a soberana vontade da sociedade e do paradigma socialdemocrata do Estado de Bem-Estar Social dos sistemas públicos universalistas europeus, canadense e outros.

P13. Tomando como parâmetro o Sistema de Saúde nacional público e universal, previsto na Constituição Federal de 1988, como você avalia o desempenho das gestões Lula e Dilma?

Nelsão. Sob o mesmo prisma que avalio as gestões anteriores: os postulados constitucionais. Essas gestões constituíram um “núcleo duro” (Ministérios da Fazenda, da Casa Civil e do Planejamento) que vem distorcendo o SUS, com drástico desfinanciamento federal, desinvestimento e precarização do trabalho público, com transformação do setor privado complementar em substitutivo do setor público.

Paralelamente, fortes e crescentes subvenções públicas ao mercado de planos privados de saúde, cooptando para esse mercado as camadas sociais médias, incluindo os trabalhadores sindicalizados e as centrais sindicais. Foi a lógica e a estratégia dominante de desviar o rumo do Estado de Bem Estar-Social universalista para o rumo do Estado neoliberal, submisso ao mercado no campo dos direitos sociais.

O desempenho das gestões Lula e Dilma, no que tocou às políticas públicas universalistas, ao contrário do almejado na histórica campanha eleitoral de 2002, segue essa mesma lógica e estratégia: permanece o referido “núcleo duro”, que barrou todas as iniciativas de repor pelo menos parte do desfinanciamento do SUS e impôs a PEC 358/2013, que reduziu mais ainda a parcela federal.

Continuou a elevação das subvenções públicas ao mercado de planos privados de saúde (MP 619/2013), patrocinou financiamentos extremamente facilitados para ampliação dos hospitais próprios das empresas de planos privados e de hospitais privados sofisticados, e abriu o mercado assistencial privado ao capital estrangeiro (MP 656/2014).

É de destacar que essa lógica e estratégia dominante segmentou a Universalidade, desviou a Integralidade e Equidade, mas não consegue impedir inúmeras trincheiras de resistência e avanços possíveis, distribuídos igualmente nos 25 anos do SUS, decisivos para futura retomada. Esta avaliação convive com a avaliação positiva da grande inclusão social consequente ao distributivismo de Estado nas gestões Lula e Dilma, que gerou inestimável salto no mercado de consumo e mercado interno, apontando para a retomada do desenvolvimento.

Avalio que houve perda histórica da oportunidade desse salto ter sido acompanhado da efetivação das políticas públicas universalistas, lastreado no grandioso apoio da sociedade no segundo mandato do Lula. Temo que tenham estreitado as chances, não só da efetivação daquelas políticas públicas, como também da própria continuidade do distributivísmos de Estado.

P13. Este ano vai ocorrer a 15a Conferência Nacional de Saúde. Na sua opinião que debates são prioritários e que resoluções deveriam ser adotadas?

Nelsão. A partir da 9ª Conferência Nacional de Saúde em 1992, os temas, pautas, termos de referência e condução da Conferência vêm passando por influência crescente dos conselhos de saúde, incluindo a participação dos seus membros como delegados. Essa realidade traz à tona a importância estratégica da bagagem de informações, análises e posicionamentos, acumulados em 12 reuniões ordinárias ao ano pelos conselhos e conselheiros.

Ao nível nacional, as grandes questões ligadas ao financiamento, à gestão, à compra de serviços privados, à gestão do pessoal, às subvenções públicas ao mercado da saúde e à construção do modelo “SUS” de atenção à saúde, encontram-se nas suas deliberações subsidiadas pelas comissões técnicas. O relatório final da 14ª Conferência Nacional aponta importantes e oportunas análises, indicações e recomendações.

Penso que o CNS deva resgatar suas análises e posições quanto ao financiamento, gestão, regulação e modelo de atenção à saúde, cabendo lembrar da PEC 51/2014 de autoria do Presidente da Câmara dos Deputados, que obriga os empregadores rurais e urbanos, com correspondente renúncia fiscal, a prover seus empregados com planos privados de saúde, PEC absolutamente enquadrada na lógica e estratégia do “núcleo duro” citado na resposta anterior.

A 15ª Conferência Nacional de Saúde deve produzir um relatório final consistente e forte, capaz de subsidiar a própria sociedade na mobilização pela retomada do SUS ao seu rumo constitucional inicial. Essa retomada requererá um a dois planos decenais, mesmo contando com efetiva vontade política favorável superando o “núcleo duro”, cujo início poderá ser a efetiva implementação de duas conquistas a favor do SUS: o Decreto 7508/2011 e Lei 141/2012, além do retorno ao PLIP 321/2013, já com 2,2 milhões de assinaturas de eleitores.

P13. Se o Ministro da Saúde te perguntasse quais alterações devem ser implementadas na gestão do ministério, o que você diria para ele?

Nelsão. Respondo reconhecendo ao Ministro que nos 25 anos do SUS, todos os Ministros da Saúde foram balizados pela lógica e estratégias da política de Estado expressas pelo referido “núcleo duro” e em algumas circunstâncias mediadas pela presidência da República. Este balizamento leva necessariamente ao exercício da governabilidade pelo Ministro, visando assegurar espaços de decisão e gestão.

Em minha militância no SUS, ora mais distante, ora mais próxima da formulação das decisões ministeriais, esse exercício torna-se tanto mais tenso quanto mais o referido balizamento se distancia dos compromissos com o SUS.

Ao nível pessoal dos Ministros as tensões permanentes frequentemente asseguram espaços mínimos a favor do SUS, por preços mais ou menos suportáveis dados pelo balizamento. Das pequenas às maiores concessões ao “núcleo duro”, a conciliação e a cooptação por projeto de poder pelo poder pode ser um trajeto nem sempre claro e consciente.

Um fator que provê maior espaço ao Ministro é a sua ligação, ausculta e interação sincera, interessada, frequente e respeitosa aos interlocutores da Comissão Intergestores Tripartite, aos colegiados do CONASS, CONASEMS, dos COSEMS, do CNS e suas comissões, dos movimentos sociais e entidades da sociedade civil, inclusive as ligadas ao Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (CEBES, ABRASCO, ABrES, AMPASA, Rede Unida, APSP, IDISA, SBB e outras).

Poucos ministros foram identificados com o “núcleo duro”, inclusive apelando para estatísticas impactantes de números absolutos de atendimentos e financiamento, que isoladamente camuflam o mero atendimento massivo de demanda reprimida em todos os níveis e o desvio de rumo na construção do modelo “SUS” de atenção à saúde: estamos hoje com 70-75% da população atendida só pelo SUS e 30-35% pelo SUS e planos privados, estes com per-capita total para saúde 5 vezes maior, e por sua vez segmentados no acesso e qualidade conforme a faixa de preço do plano, sendo complementados pelo SUS na rotina e nas ações judiciais individuais.

A maioria dos ministros desenvolveu a “sua” governabilidade: o limite no âmbito da conciliação gerou o pedido de demissão de dois Ministros (1993 e 1996) e a demissão do Secretário Executivo (2004).

Minha recomendação ao atual Ministro é a de insistir ao exagero na ligação e ausculta acima sublinhadas, pelo menos em 1/3 das suas atividades. Inclusive porque não se trata de qualquer sectarismo à esquerda, mas somente de coerência efetiva contra a cooptação do nosso Estado, no campo dos direitos sociais fundamentais, pela voracidade do mercado neoliberal.

P13. O que você acha que deve ocorrer, para tornar possível uma mudança de linha nesse sentido que você defende?

Nelsão. A militância realmente engajada na realização plena do SUS e dos valores humanos da solidariedade e direitos de cidadania deve compartilhar seus esforços, já enormes, com os das demais áreas sociais da cidadania, sob o inabdicável horizonte da democratização do Estado e construção de um projeto de nação participativo e democrático.

Mais que um sonho, já foi quase alcançado pela sociedade consciente e mobilizada nos anos 1980. Abalou as estruturas, mas não deu para reestruturar o Estado nem democratizá-lo; emplacou na Constituição o capítulo da Ordem Social estruturado no paradigma socialdemocrata do Estado de Bem-Estar Social, mas não deu para impedir a construção da hegemonia neoliberal, hegemonia que começa hoje a perder sustentabilidade.

Fonte: VioMundo  

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