O desempenho das gestões Lula
e Dilma, no que tocou às políticas públicas universalistas, ao contrário do
almejado na histórica campanha eleitoral de 2002, segue essa mesma lógica e
estratégia: permanece o referido “núcleo duro”, que barrou todas as iniciativas
de repor pelo menos parte do desfinanciamento do SUS e impôs a PEC 358/2013,
que reduziu mais ainda a parcela federal. Esta é a opinião do professor Nelson
Rodrigues dos Santos. Ele concedeu entrevista à Página 13. O presidente do
Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA) falou, sobretudo, a respeito da
15ª Conferência Nacional da Saúde.
Página 13. Resuma para nós:
qual é o SUS dos seus sonhos, aquele pelo qual você vem lutando desde os anos
1970?
Nelsão. É o SUS que iniciou na
acumulação de crescentes iniciativas municipais nos anos 1970, de atenção
primária à saúde integral e equitativa em periferias urbanas, que com o
convênio com a Previdência Social universalizaram para toda a população e se incorporaram
ao Movimento da Reforma Sanitária Brasileira. Passa pela 8ª Conferência
Nacional de Saúde, pela Comissão Nacional da Reforma Sanitária e pela
Assembleia Nacional Constituinte. A Constituição de 1988 consagrou a Seguridade
Social, os direitos de cidadania e o SUS universalista, sob a soberana vontade
da sociedade e do paradigma socialdemocrata do Estado de Bem-Estar Social dos
sistemas públicos universalistas europeus, canadense e outros.
P13. Tomando como parâmetro o
Sistema de Saúde nacional público e universal, previsto na Constituição Federal
de 1988, como você avalia o desempenho das gestões Lula e Dilma?
Nelsão. Sob o mesmo prisma que
avalio as gestões anteriores: os postulados constitucionais. Essas gestões
constituíram um “núcleo duro” (Ministérios da Fazenda, da Casa Civil e do
Planejamento) que vem distorcendo o SUS, com drástico desfinanciamento federal,
desinvestimento e precarização do trabalho público, com transformação do setor
privado complementar em substitutivo do setor público.
Paralelamente, fortes e
crescentes subvenções públicas ao mercado de planos privados de saúde,
cooptando para esse mercado as camadas sociais médias, incluindo os
trabalhadores sindicalizados e as centrais sindicais. Foi a lógica e a
estratégia dominante de desviar o rumo do Estado de Bem Estar-Social
universalista para o rumo do Estado neoliberal, submisso ao mercado no campo
dos direitos sociais.
O desempenho das gestões Lula
e Dilma, no que tocou às políticas públicas universalistas, ao contrário do
almejado na histórica campanha eleitoral de 2002, segue essa mesma lógica e
estratégia: permanece o referido “núcleo duro”, que barrou todas as iniciativas
de repor pelo menos parte do desfinanciamento do SUS e impôs a PEC 358/2013,
que reduziu mais ainda a parcela federal.
Continuou a elevação das
subvenções públicas ao mercado de planos privados de saúde (MP 619/2013),
patrocinou financiamentos extremamente facilitados para ampliação dos hospitais
próprios das empresas de planos privados e de hospitais privados sofisticados,
e abriu o mercado assistencial privado ao capital estrangeiro (MP 656/2014).
É de destacar que essa lógica
e estratégia dominante segmentou a Universalidade, desviou a Integralidade e
Equidade, mas não consegue impedir inúmeras trincheiras de resistência e
avanços possíveis, distribuídos igualmente nos 25 anos do SUS, decisivos para
futura retomada. Esta avaliação convive com a avaliação positiva da grande
inclusão social consequente ao distributivismo de Estado nas gestões Lula e
Dilma, que gerou inestimável salto no mercado de consumo e mercado interno,
apontando para a retomada do desenvolvimento.
Avalio que houve perda
histórica da oportunidade desse salto ter sido acompanhado da efetivação das
políticas públicas universalistas, lastreado no grandioso apoio da sociedade no
segundo mandato do Lula. Temo que tenham estreitado as chances, não só da
efetivação daquelas políticas públicas, como também da própria continuidade do
distributivísmos de Estado.
P13. Este ano vai ocorrer a
15a Conferência Nacional de Saúde. Na sua opinião que debates são prioritários
e que resoluções deveriam ser adotadas?
Nelsão. A partir da 9ª
Conferência Nacional de Saúde em 1992, os temas, pautas, termos de referência e
condução da Conferência vêm passando por influência crescente dos conselhos de
saúde, incluindo a participação dos seus membros como delegados. Essa realidade
traz à tona a importância estratégica da bagagem de informações, análises e
posicionamentos, acumulados em 12 reuniões ordinárias ao ano pelos conselhos e
conselheiros.
Ao nível nacional, as grandes
questões ligadas ao financiamento, à gestão, à compra de serviços privados, à
gestão do pessoal, às subvenções públicas ao mercado da saúde e à construção do
modelo “SUS” de atenção à saúde, encontram-se nas suas deliberações subsidiadas
pelas comissões técnicas. O relatório final da 14ª Conferência Nacional aponta
importantes e oportunas análises, indicações e recomendações.
Penso que o CNS deva resgatar
suas análises e posições quanto ao financiamento, gestão, regulação e modelo de
atenção à saúde, cabendo lembrar da PEC 51/2014 de autoria do Presidente da
Câmara dos Deputados, que obriga os empregadores rurais e urbanos, com
correspondente renúncia fiscal, a prover seus empregados com planos privados de
saúde, PEC absolutamente enquadrada na lógica e estratégia do “núcleo duro”
citado na resposta anterior.
A 15ª Conferência Nacional de
Saúde deve produzir um relatório final consistente e forte, capaz de subsidiar
a própria sociedade na mobilização pela retomada do SUS ao seu rumo
constitucional inicial. Essa retomada requererá um a dois planos decenais,
mesmo contando com efetiva vontade política favorável superando o “núcleo
duro”, cujo início poderá ser a efetiva implementação de duas conquistas a
favor do SUS: o Decreto 7508/2011 e Lei 141/2012, além do retorno ao PLIP
321/2013, já com 2,2 milhões de assinaturas de eleitores.
P13. Se o Ministro da Saúde te
perguntasse quais alterações devem ser implementadas na gestão do ministério, o
que você diria para ele?
Nelsão. Respondo reconhecendo
ao Ministro que nos 25 anos do SUS, todos os Ministros da Saúde foram balizados
pela lógica e estratégias da política de Estado expressas pelo referido “núcleo
duro” e em algumas circunstâncias mediadas pela presidência da República. Este
balizamento leva necessariamente ao exercício da governabilidade pelo Ministro,
visando assegurar espaços de decisão e gestão.
Em minha militância no SUS,
ora mais distante, ora mais próxima da formulação das decisões ministeriais,
esse exercício torna-se tanto mais tenso quanto mais o referido balizamento se
distancia dos compromissos com o SUS.
Ao nível pessoal dos Ministros
as tensões permanentes frequentemente asseguram espaços mínimos a favor do SUS,
por preços mais ou menos suportáveis dados pelo balizamento. Das pequenas às
maiores concessões ao “núcleo duro”, a conciliação e a cooptação por projeto de
poder pelo poder pode ser um trajeto nem sempre claro e consciente.
Um fator que provê maior
espaço ao Ministro é a sua ligação, ausculta e interação sincera, interessada,
frequente e respeitosa aos interlocutores da Comissão Intergestores Tripartite,
aos colegiados do CONASS, CONASEMS, dos COSEMS, do CNS e suas comissões, dos
movimentos sociais e entidades da sociedade civil, inclusive as ligadas ao
Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (CEBES, ABRASCO, ABrES, AMPASA, Rede
Unida, APSP, IDISA, SBB e outras).
Poucos ministros foram
identificados com o “núcleo duro”, inclusive apelando para estatísticas
impactantes de números absolutos de atendimentos e financiamento, que
isoladamente camuflam o mero atendimento massivo de demanda reprimida em todos
os níveis e o desvio de rumo na construção do modelo “SUS” de atenção à saúde:
estamos hoje com 70-75% da população atendida só pelo SUS e 30-35% pelo SUS e
planos privados, estes com per-capita total para saúde 5 vezes maior, e por sua
vez segmentados no acesso e qualidade conforme a faixa de preço do plano, sendo
complementados pelo SUS na rotina e nas ações judiciais individuais.
A maioria dos ministros
desenvolveu a “sua” governabilidade: o limite no âmbito da conciliação gerou o
pedido de demissão de dois Ministros (1993 e 1996) e a demissão do Secretário
Executivo (2004).
Minha recomendação ao atual
Ministro é a de insistir ao exagero na ligação e ausculta acima sublinhadas,
pelo menos em 1/3 das suas atividades. Inclusive porque não se trata de qualquer
sectarismo à esquerda, mas somente de coerência efetiva contra a cooptação do
nosso Estado, no campo dos direitos sociais fundamentais, pela voracidade do
mercado neoliberal.
P13. O que você acha que deve
ocorrer, para tornar possível uma mudança de linha nesse sentido que você
defende?
Nelsão. A militância realmente
engajada na realização plena do SUS e dos valores humanos da solidariedade e
direitos de cidadania deve compartilhar seus esforços, já enormes, com os das
demais áreas sociais da cidadania, sob o inabdicável horizonte da
democratização do Estado e construção de um projeto de nação participativo e
democrático.
Mais que um sonho, já foi
quase alcançado pela sociedade consciente e mobilizada nos anos 1980. Abalou as
estruturas, mas não deu para reestruturar o Estado nem democratizá-lo; emplacou
na Constituição o capítulo da Ordem Social estruturado no paradigma
socialdemocrata do Estado de Bem-Estar Social, mas não deu para impedir a
construção da hegemonia neoliberal, hegemonia que começa hoje a perder
sustentabilidade.
Fonte: VioMundo
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