Empresa acusa Anvisa de vazar
documento sigiloso à farmacêutica Shire
A empresa Panamerican Medical
Supply, com sede em Jundiaí (SP), acusa a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) de vazar documento sigiloso à farmacêutica irlandesa Shire.
Segundo a ação que tramita na 9ª Vara Cível do Distrito Federal, os papéis
com dados do medicamento Hunterase foram entregues de forma extraoficial.
O produto é concorrente de
droga fabricada pela Shire, o Elaprase, no mercado milionário para tratamento
de doenças raras. As advogadas Rosangela Wolff Moro, esposa do ministro da
Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, e Natasha Ghassan Abdou representam a
Panamerican.
A empresa afirma que o
documento supostamente vazado é o “Parecer Técnico Integral” que embasou a
decisão da Anvisa de negar o registro do Hunterase em 2016. A droga é fabricada
pela farmacêutica coreana Green Cross, representada no Brasil pela autora da
ação.
Segundo a Panamerican, o
parecer não poderia ser divulgado por conter dados sensíveis sobre o
desenvolvimento do produto, como metodologia de estudos clínicos e não
clínicos, número de pacientes analisados, entre outros. “Portanto, na Anvisa
foi depositado o segredo industrial do produto biológico novo Hunterase, sua
composição completa (formulação), tal como determina a RDC nº 55/2010”, afirma.
A empresa diz que só percebeu
o caso quando a concorrente apresentou os papéis da Anvisa em uma ação
judicial. A Panamerican afirma que neste processo a Shire usou dados “em
proveito próprio para seus interesses comerciais e para denegrir o produto da
Autora [da ação]”.
Na ação, a Panamerican pede
que a Justiça reconheça os seguintes atos ilícitos supostamente cometidos:
·
Em relação à Anvisa:
1) divulgar para a concorrente
da autora documento sobre o qual tinha o dever de sigilo; e
2) divulgá-lo por meios
fraudulentos e extraoficiais, violando leis sobre propriedade industrial e
regras da própria Anvisa.
·
Em relação à Shire:
1) ter acesso a documento
sigiloso;
2) obtê-lo por meios
fraudulentos e extraoficiais;
3) utilizar o documento que
sabia ser sigiloso em processo em que litiga com terceiros;
4) possibilitar que documento
sigiloso tenha permanecido em processo de trâmite eletrônico e acesso público;
e
5) dar ciência do documento
sigiloso para empresa com quem litigava naqueles autos, configurando, desta
maneira, ato de concorrência desleal.
A autora da ação ainda pede
que a Justiça elabore “certidão explicativa do ajuizamento desta demanda” para
tradução e envio aos Estados Unidos, “aonde serão adotadas outras medidas”,
além de envio de ofício ao Ministério Público Federal sobre o caso. O valor
oferecido à causa é de R$ 100 mil.
A Anvisa e a Shire disseram ao
JOTA que o envio das informações ocorreu dentro da legalidade. Leia no final
deste texto as íntegras das manifestações das acusadas na ação.
Suposto vazamento
Ao indeferir o registro do
Hunterase, assim como de outras drogas, a Anvisa publicou em seu site um
“Parecer Público de Avaliação de Medicamento (PPAM)”. A agência também produziu
um documento mais extenso, com informações sigilosas dos produtos, que deve ser
compartilhado apenas com o interessado direto no processo, segundo argumenta a
Panamerican.
Segundo a Anvisa, não havia
informações com sigilo industrial ou que ferissem a Lei de Acesso à Informação
entre os papéis entregues à Shire.
A Panamerican pediu a retirada
do documento que havia sido usado em processo público, medida aceita pela
Justiça no final de junho de 2018. Ao ser questionada em juízo, a Shire
argumentou que obteve o documento supostamente sigiloso “de forma transparente
e oficial” e “em atendimento a pedido de informação formulado pela SHIRE no
Sistema Eletrônico de Serviço de Informação ao Cidadão (eSIC)”.
A Panamerican contesta esta
versão. Para a empresa, o pedido citado por sua concorrente foi feito “no dia
imediatamente seguinte ao da publicação do indeferimento do registro do
Hunterase” no Diário Oficial da União. Ainda segundo a autora da ação, a
resposta da Anvisa ao pedido da Shire foi dada quando o parecer público sobre o
indeferimento “sequer havia sido publicado”.
A empresa que tentou o
registro do Hunterase afirma que pediu à Anvisa o parecer com informações
sigilosas apenas após descobrir que a Shire tinha em mãos este documento.
Segundo a Panamerican, a agência negou três pedidos feitos com base na Lei de
Acesso à Informação.
“Como visto, a Anvisa não
forneceu o Parecer Integral nem mesmo para a Autora requerente do registro e,
portanto, interessada direta, mas o forneceu para Shire.”
A Anvisa só teria liberado os
documentos após afirmar, em mandado de segurança, que houve erro administrativo
da agência. Ainda assim, diz a ação, o processo foi recebido incompleto e com
diferenças sobre os papéis que estavam com a concorrente. “O Parecer Técnico
Integral em posse da Shire não possui páginas numeradas pela Anvisa, ao contrário
do parecer entregue à Autora”, diz a Panamerican. “Portanto, forçoso concluir
que a Anvisa o forneceu para a Shire por meios extraoficiais.”
Disputa milionária
A Panamerican e a Shire
disputam o mercado para tratamento de pacientes com a doença rara
mucopolissacaridose tipo II (MPS-II), conhecida como Síndrome de Hunter.
Mesmo sem o registro do
Hunterase pela Anvisa, o medicamento tem sido comprado pelo governo para
atender pacientes que conseguem na Justiça o tratamento pelo Sistema Único de
Saúde (SUS). Trata-se de casos em que médicos prescrevem ao paciente o
Hunterase ou deixam em aberto a escolha entre o medicamento coreano e o da
Shire.
Quando há prescrição dupla, a
decisão pode ocorrer em disputa de preços. “Hunterase já concorreu com o
Elaprase em 11 (onze) oportunidades e em todas as ocasiões venceu a
concorrência”, registra a ação.
Em 2018, o tratamento por
decisão da Justiça com o Elaprase custou R$ 115 milhões. Já os empenhos para
compra de Hunterase, da Green Cross, somam cerca de R$ 15 milhões, segundo
dados do Portal da Transparência.
O registro do Hunterase no
Brasil foi indeferido pela Anvisa em 2016. O atual diretor-presidente da
agência, William Dib, chegou a negar recurso da empresa. A droga está
regularizada no país de origem, Coréia do Sul, desde 2012, além de Argélia,
Rússia e Cazaquistão. Já o Elaprase, da Shire, tem registro nos principais
mercados do mundo, como Estados Unidos e Europa. No Brasil, a Anvisa aceitou o
registro deste medicamento em 2008.
Outro lado
Em nota, a Shire afirma que
não foi citada e por isso desconhece os termos da ação. Disse também que os
documentos “foram obtidos de forma absolutamente lícita e transparente” e que a
acusação “não merece prosperar”. Abaixo, a íntegra da manifestação:
“A Shire, empresa comprometida
com os mais elevados padrões éticos e morais, informa que ainda não foi citada
dos termos da ação número 1001068-21.2019.4.01.3400, que tramita na 9ª Vara
Federal Cível da SJDF, desconhecendo, portanto, seu inteiro teor. Não obstante,
a empresa reafirma o quanto já informado e comprovado anteriormente à
PANAMERICAN MEDICAL SUPPLY SUPRIMENTOS MÉDICOS LTDA, no sentido de que os
mencionados documentos foram obtidos de forma absolutamente lícita e
transparente, por meio de requerimento oficial formulado à ANVISA. A suposta
acusação em relação à Shire não merece prosperar, conforme será demonstrado
oportunamente na referida ação judicial. Colocamos-nos ao inteiro dispor para
quaisquer esclarecimentos que se fizerem necessários.”
A Anvisa disse que o pedido de
Shire para obter o documento “ocorreu de forma legal e transparente”. Também
afirma que não foi citada na ação. Abaixo, a íntegra da nota enviada ao JOTA:
“Com relação ao referido
assunto, temos inicialmente a esclarecer que o processo de análise de registro
do produto Hunterase, da Panamerican Digital, tramitou de forma regular na
Anvisa. Da mesma maneira, o pedido de solicitação de informação pela Empresa
Shire ocorreu de forma legal e transparente, com o pedido tendo sido feito via
e-sic, meio oficial para solicitação de tal tipo de informação. Por fim
informamos que a Anvisa ainda não foi citada no processo judicial, razão pela
qual não temos ciência do que é requerido na Ação.”
Processo
1001068-21.2019.4.01.3400
Fonte: https://www.jota.info
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