A imprescindibilidade da
transparência e da adequada fundamentação no processo de incorporação de
tecnologias no SUS
Para que o processo
administrativo seja aprimorado, o Poder Judiciário pode exercer importante
papel, desde que demandado, produzindo o controle de atos, preferencialmente em
processos coletivos.
1. A Conitec e o processo de
incorporação de tecnologia
A regulamentação do fluxo do
processo de incorporação de tecnologias em saúde é relativamente recente no
Sistema Único de Saúde. O primeiro ato normativo a tratar do tema foi a
portaria 152/GM, de 19 de janeiro de 2006.
1.1 A Citec – Comissão para
Incorporação de Tecnologias do Ministério da Saúde
Num primeiro momento, a
atribuição da gestão do processo de incorporação ficou a cargo da Secretaria de
Atenção à Saúde (SAS) e a gestão de avaliação das tecnologias de interesse para
o SUS, a cargo da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos
(SCTIE), conforme estabeleceu seu art. 1º, § 2º.
A mesma portaria, em seu art.
2º, caput, instituiu a CITEC - Comissão para Incorporação de Tecnologias do
Ministério da Saúde, com a “missão de encaminhar o processo de admissibilidade
de tecnologias em consonância com as necessidades sociais em saúde e de gestão
do SUS”.
Com a portaria 2.587, de 30 de
outubro de 2008, a CITEC passou a ser vinculada à SCTIE.
1.2 A Conitec - Comissão
Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS
Posteriormente, a lei
12.401/11 criou a CONITEC - Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no
SUS, que substituiu a CITEC. Regulamentando a referida lei, o decreto 7.646/11
tratou da composição e estrutura da CONITEC, bem como do novo processo de
incorporação. Atualmente, a CONITEC é o órgão que promove as avaliações de
tecnologias em saúde (ATS).
1.3 O processo de
incorporaçãot
O art. 3º, do decreto, que
trata das diretrizes da CONITEC, prevê que o processo privilegiará “a
incorporação de tecnologias por critérios racionais e parâmetros de eficácia,
eficiência e efetividade adequados às necessidades de saúde” (inciso III), bem
como “a incorporação de tecnologias que sejam relevantes para o cidadão e para
o sistema de saúde, baseadas na relação de custo-efetividade” (inciso IV).
Seu art. 15 expressamente
estatui que a incorporação, a exclusão ou a alteração de tecnologias em saúde
serão precedidas de processo administrativo.
O processo se inicia com o
requerimento para incorporação e alteração de tecnologia ou para a constituição
ou alteração de protocolos clínicos de diretrizes terapêuticas pelo interessado
(art. 15, § 1º, do decreto 7.646/11). A rigor, qualquer pessoa, física ou
jurídica, pode fazer esse requerimento. Todavia, o decreto elenca requisitos
que tornam a CONITEC quase inacessível àqueles que não possuam capacidade
financeira ou técnica para cumpri-los. A título de exemplo, para a iniciativa,
exigem-se estudos econômicos que praticamente só são feitos pelas indústrias
farmacêuticas. Mais adiante, ao analisar quem são os demandantes de processos
de incorporação, ficará bem clara a dificuldade de acesso à CONITEC.
Analisada a proposta de
incorporação, caso se verifique que ela preenche os requisitos previstos no
decreto, será feito um relatório considerando as evidências científicas, a
avaliação econômica e o impacto orçamentário (art. 18).
Em seguida, o relatório será
submetido à consulta pública (art. 19) e, se for o caso, à audiência pública
(art. 21). Por fim, um relatório final é elaborado e enviado para a SCTIE (art.
20).
A decisão de incorporação ou
não é tomada pelo Secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do
Ministério da Saúde (art. 23). Em face dessa decisão, caberá recurso ao próprio
Secretário ou ao Ministro da Saúde (art. 26).
2. A natureza dos atos de
processo de incorporação de tecnologias
2.1 Atos administrativos
Os atos da CONITEC são atos
administrativos, na medida em que são produzidos no desempenho de função
administrativa por agente estatal ou por quem esteja em seu lugar. Sendo assim,
para que tenham validade, esses atos devem respeitar os princípios do direito
administrativo, no que diz respeito a todos os seus aspectos: competência,
forma, conteúdo, motivo e finalidade.
2.2 Existência de falhas e o
aperfeiçoamento da atuação da Conitec
Ocorre que, por vezes,
encontram-se falhas – que serão abordadas adiante - nos relatórios elaborados
pela CONITEC, o que pode ser justificado em face da sua recente criação.
Ao contrário de outros órgãos
e agências de avaliação de tecnologias em saúde no mundo, a CONITEC não possui
nem uma década de existência.
2.3 O papel do Judiciário
Dessa forma, assim como outras
agências tiveram sua atuação aperfeiçoada ao longo das décadas, o fenômeno
também deve ocorrer com a CONITEC. É o que demonstra o autor Daniel Wang,
especificamente em relação ao sistema de saúde inglês, o NHS, National Health
Service1.
Do texto do citado autor,
extrai-se que o aperfeiçoamento das decisões do NHS se deveu muito à atuação do
Poder Judiciário, que compeliu o sistema de saúde a dar mais clareza,
transparência e racionalidade às suas decisões, sempre com o objetivo de exigir
que fossem declinadas as reais razões para que uma tecnologia fosse ou não
incorporada.
Todavia, no Reino Unido, os
juízes, ao invés de proferir decisões concedendo tecnologias pleiteadas em
ações individuais, questionavam o próprio processo de incorporação, o que
forçou que o sistema de saúde trouxesse mais elementos às suas decisões (por
quê, como e o quê), a fim de se diminuir o risco de serem revisadas pelo
Judiciário.
Em suas conclusões, o autor
assim se manifesta:
“First, a comprehensive
account of the judicial decisions in cases related to health care rationing in
this article challenges the idea that English courts tend to be deferential to
authorities when it comes to administrative decisions involving discretionary
allocative decisions in social policies. Whilst it is true that courts have
very rarely interfered directly on the outcome of a policy by, for instance,
ordering the provision of a treatment, they have definitely not shied away from
holding authorities to account by continuously requiring better reasons and
procedural fairness.”
3. A pesquisa realizada
Levando em consideração a
premissa de que o exame dos atos administrativos já praticados pode propiciar
elementos concretos para a avaliação da qualidade das decisões, procedeu-se à
análise de 64 relatórios de recomendações da CONITEC, referentes a
medicamentos, dos anos de 2018 e 2019. O intuito do estudo foi apurar eventuais
falhas em relatórios, para que elas possam ser corrigidas e evitadas
futuramente.
Da análise feita, pode-se
ressaltar que foram encontradas situações que chamam a atenção em ao menos 16
relatórios de 2018 e em 1 relatório de 2019. Percebe-se que os relatórios de
2019 já estão mais adequados e mais bem fundamentados, o que evidencia a boa
intenção do CONITEC e a evolução na sua atuação.
Com base nesse levantamento,
há atitudes e cuidados que devem ou podem ser tomados a fim de que o processo
se desenvolva plenamente conforme as regras do direito administrativo.
Ressalte-se que não há dúvidas
de que há questões atinentes à incorporação de tecnologias que são
eminentemente técnicas e que fogem da área de conhecimento de juristas. Em
razão disso, o enfoque dado na pesquisa se refere unicamente às consequências
jurídicas dos atos praticados pela CONITEC.
4. Os dados colhidos com a
pesquisa
4.1 Os demandantes
Num primeiro momento, é
relevante mostrar alguns dados colhidos na pesquisa. Com relação ao ente que dá
início ao processo de incorporação de tecnologia, pode-se dividir os
demandantes em dois grandes grupos: os demandantes usuais e os inusuais.
No primeiro grupo,
encontram-se a indústria farmacêutica, que deflagrou 40 processos dos 64
analisados, bem como a própria Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos
Estratégicos, que o fez em relação a 10 processos.
Daí já se percebe que é errônea a justificativa muitas
vezes dada por parte do poder público de que, caso a indústria farmacêutica não
deflagre o processo de incorporação de tecnologia, nada pode ser feito pelo
Ministério da Saúde. Nesse sentido, o próprio decreto 7.646/11 prevê a
possibilidade do Ministério da Saúde tomar a iniciativa de processos de
incorporação (art. 15, § 4º).
Não se olvida que, nos casos
em que a SCTIE deu início ao processo, ela pode ter sido motivada
principalmente pela excessiva judicialização de alguns medicamentos, de forma
que a análise por parte da CONITEC se mostrou uma forma racional de lidar com o
excesso existente. Todavia, isso não afasta a conclusão de que o próprio MS
pode, através de seus órgãos, atuar de ofício e provocar a incorporação de
tecnologia em outros casos.
Entre os demandantes usuais
também figuram os Grupos Elaboradores de PCDTs, que foram responsáveis pelo
início de 5 processos de incorporação de medicamentos.
No grupo dos demandantes
inusuais estão o Conasems, a Prefeitura de Belo Horizonte, a Sociedade
Brasileira de Oncologia, a Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica e a 22ª
Vara Federal de Belo Horizonte, sendo que cada um desses deflagrou 1 processo
de análise pela CONITEC. Ainda, encontram-se a Secretaria Estadual de Saúde de
MG e a Secretaria de Vigilância em Saúde, ambas com 2 processos cada.
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