Leonardo
Maran Neiva - 26 nov 2019
Viviane Sedola, CEO da Dr.
Cannabis: a plataforma online promete conectar pessoas que precisam de
tratamento à base de cannabis com uma rede de médicos dispostos a prescrevê-los
(foto: Marcos Credie).
O uso medicinal da cannabis é permitido no
Brasil? Se um médico prescreve um medicamento à base da planta, o paciente tem
direito de comprar e usar esse fármaco? Com a liberação desse novo mercado, as
empresas farmacêuticas já estão investindo fortemente no setor no país?
As respostas não são simples. A legislação
brasileira sobre o tema ainda está a léguas de distância daquela em vigor em
países como Canadá, Argentina e Chile, onde o uso medicinal da planta é
legalizado.
No Brasil, a Lei das Drogas, de 2006,
autorizou o plantio da cannabis em casos específicos — desde que seu uso seja
medicinal e científico, e passando sempre pelo crivo da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa).
Mesmo assim, foram oito anos até a
autorização da primeira importação legal de um medicamento feito com a planta.
Aconteceu em 2014, quando a família Fischer, de Brasília, recebeu aval para
importar o remédio necessário para tratar os sintomas da filha, Anny (então com
6 anos), que sofre de uma síndrome rara.
A agência passou a analisar todos os pedidos
do tipo. Em 2015, a Anvisa retirou o canabidiol, um composto da cannabis, do
rol de substâncias proibidas. No ano seguinte, autorizou a importação de
medicamentos com THC, principal substância psicoativa da planta.
Essas decisões ajudaram a dar o pontapé
inicial num mercado ainda incipiente, com empreendedores de olho no potencial
comercial dos fármacos à base de cannabis.
SÓ 1 100 MÉDICOS TÊM AUTORIZAÇÃO PARA
RECEITAR OS MEDICAMENTOS
Uma dessas empreendedoras é Viviane Sedola.
Formada em Relações Públicas, ela criou, em 2018, a Dr. Cannabis. A plataforma
online promete conectar pessoas que precisam de tratamento à base de cannabis
com uma rede de médicos dispostos a prescrevê-los.
“Quando começamos, ligamos para
todos os nomes em uma lista de médicos prescritores. Quando perguntávamos para
a secretária se o médico receitava medicamentos de cannabis, quase todas
respondiam que não. O estigma da planta ainda está muito presente dentro dos
consultórios”
Hoje, são cerca de 5 mil pacientes
cadastrados e 500 médicos. A Dr. Cannabis quer organizar um curso para que mais
profissionais se sintam confortáveis em prescrever os medicamentos. Esbarra,
porém, numa restrição imposta pela Anvisa:
“Há mais de 450 mil médicos no Brasil hoje.
Ter só cerca de 1 100 aprovados pela Anvisa para receitar esses medicamentos
ainda é um proporção muito pequena, se formos pensar na porcentagem da
população que poderia se beneficiar deles”, diz.
No fim do ano passado, a Dr. Cannabis recebeu
R$ 750 mil por meio de um equity crowdfunding. A empresa também auxilia nos
pedidos de autorização de importação dos fármacos à Anvisa, ajudando a lidar
com a dor de cabeça dos trâmites legais (a espera pelo ok da agência dura até
60 dias), e faz a ponte com fornecedores dos produtos, ficando com uma
porcentagem nas vendas das farmacêuticas.
A FALTA DE REGULAMENTAÇÃO SABOTA UM MERCADO
POTENCIAL DE R$ 4,7 BI
Uma projeção da consultoria americana New Frontier Data, em
parceria com a startup brasileira The Green Hub, afirma que uma suposta legalização da venda
medicinal resultaria em um total de R$ 4,7 bilhões anuais em vendas de
medicamentos no país para um público estimado em 3,4 milhões de pacientes em
tratamento de ansiedade, autismo, câncer e dores crônicas.
O caminho para esse mercado, porém, é
pedregoso. Contrário à posição da Anvisa, o Conselho Federal de Medicina (CFM)
hoje só reconhece a aplicação medicinal da cannabis para pacientes menores de
idade com epilepsia, apesar de haver evidências de benefícios do seu uso contra
doenças como autismo e esclerose múltipla.
Leia também: “Um mercado de cannabis legalizado enfraquece a criminalidade e
gera receita para educação e saúde”
Representantes do governo federal, além do
CFM e da Associação Brasileira de Psiquiatria, se manifestaram contra uma
proposta que liberaria o plantio da cannabis para pesquisa e produção de
medicamentos no país. Em outubro, a Anvisa adiou a votação do projeto (e não há
uma previsão oficial para que seja retomada).
O receio de quem atua na área é que novos
adiamentos levem à rejeição da proposta. Dos cinco diretores da Primeira
Diretoria da Anvisa, três (William Dib, atual presidente do órgão, Renato Porto
e Alessandra Bastos) já se manifestaram a favor da regulação. Porém, Porto
deixará a Anvisa em 12 de dezembro, e o mandato de Dib se encerra no dia 26. A
escolha dos substitutos, pelo Governo, pode sepultar de vez o projeto.
PARA AS IMPORTADORAS, A OPÇÃO É MANTER
LABORATÓRIOS FORA DO PAÍS
A RDC (Resolução da Diretoria Colegiada)
17/2015 da Anvisa restringe a pacientes, apenas, a importação direta dos
produtos. Significa que só é possível importar depois que o paciente já recebeu
a aprovação para o uso do medicamento. Por isso os preços são tão altos — não é
possível nem sequer fazer estoque no Brasil.
A alternativa às empresas, hoje, é manter
laboratórios fora do país e fazer o “meio de campo” para a importação. Com sede
na Vila Madalena, a GreenCare —
fundada em 2018 como uma farmacêutica de nicho para a comercialização de
medicamentos feitos com canabidiol — comercializa fármacos produzidos por um
laboratório americano, sob a marca própria Hempflex, que custam de R$ 189 aos
R$ 1 690.
O trio de sócios é formado por Martim Prado
Mattos, ex-CFO da Hypera Pharma; Marcelo Marco Antonio, da família fundadora
do Hospital
São Luiz; e Fábio Furtado, cofundador da Grid, de serviços
automotivos. Presidente da empresa, Martim afirma que a GreenCare também
investe na formação continuada de médicos para a prescrição de medicamentos à
base de cannabis:
“É um conhecimento ao qual o
médico não teve acesso, não tem aula sobre o sistema canabinoide na faculdade.
É uma oportunidade muito grande de mostrar o potencial desses remédios para a
classe médica e o nível baixo de efeitos adversos, se comparados a outros
tratamentos para as mesmas patologias”
Segundo ele, mais de mil pacientes já
receberam receitas de medicamentos de cannabis prescritas por profissionais
orientados pela GreenCare.
OS REMÉDIOS AINDA SÃO CAROS. E DOENÇA NÃO
ESCOLHE CLASSE SOCIAL
Outro player é a HempMeds Brasil. A empresa —
que tem Norberto Fischer, pai de Anny, como diretor de assuntos internacionais
— é uma subsidiária da norte-americana Medical Marijuana,
Inc., a primeira companhia a ter um produto de cannabis medicinal com a
importação e o uso legalizados no Brasil.
Medicamentos da HempMeds Brasil: produzidos
nos Estados Unidos, são importados pela empresa e comercializados por preços
que vão de US$ 65 a US$ 349.
Ao contrário da matriz (que também investe em
cosméticos), a HempMeds Brasil foca 100% no uso medicinal da planta, atuando na
importação e venda dos fármacos produzidos nos EUA. Um time dá apoio consultivo
ao paciente durante o processo de envio de informações à Anvisa.
Matheus Patelli, gerente de marketing da
empresa, diz que os preços dos remédios à base de cannabis estão fora da
realidade de muitos brasileiros. No primeiro semestre de 2019, o estado de São
Paulo recebeu 148 ações na Justiça obrigando o fornecimento de remédios
derivados da cannabis (quase 18 vezes mais do que em 2015).
“O tratamento ainda é caro no
Brasil — e doença não escolhe classe social. Muita gente entra na Justiça para
conseguir os remédios, o que acaba ficando pesado para o SUS. O ideal seria uma
legislação mais branda que possibilitasse manter estoque aqui, reduzindo a
demora da entrega e o custo logístico dos produtos”
Os medicamentos são divididos em categorias:
green label, com componentes integrais da planta; blue label, em que os
componentes são transformados em CBD (canabidiol) e THC (tetraidrocanabinol);
gold label, no qual o extrato passa por filtragem adicional; e RSHO-X, que
contém apenas canabidiol. Os preços vão de US$ 65 a US$ 349.
DESENVOLVER OS PRODUTOS NO PAÍS É A META PARA
BARATEAR O CUSTO
O advogado Caio Santos Abreu descobriu o
potencial medicinal da cannabis com o tratamento da mãe, que sofria de câncer
desde 2005 e teve uma boa resposta à droga. Mesmo com sua morte, em 2009, ele
não parou de pesquisar o assunto. E, em 2015, após captar R$ 11 milhões com
investidores estrangeiros, criou a Entourage Phytolab.
Com sede em Valinhos (SP) e foco na pesquisa
e produção de remédios à base de cannabis, a Entourage ainda não está
comercializando — mas nasceu com o objetivo de levar ao mercado os primeiros
fármacos totalmente made in Brazil. A empresa tem uma autorização
especial da Anvisa para receber a planta, com propósito de pesquisa.
Segundo Caio, a regulamentação pela Agência
de Vigilância Sanitária poderia ajudar no aporte de investimentos no setor,
assim como melhorar a percepção interna sobre o produto. O empreendedor, porém,
demonstra pessimismo:
“Estamos acompanhando o processo
de perto, mas infelizmente não esperamos que essa aprovação aconteça. É uma
tristeza ver que o Brasil não dá o devido valor à regulamentação do uso
medicinal da cannabis, mesmo com a proposta por aqui sendo muito mais
conservadora do que as de outros países”
A Entourage Phytolab desenvolveu processos
produtivos de extração, ativação da matéria-prima e formulações, além da
realização de estudos pré-clínicos. A expectativa é que os testes clínicos
comecem a partir de 2020, com a perspectiva de registro dos produtos para a
venda no mercado brasileiro nos próximos anos.
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