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segunda-feira, 3 de outubro de 2016

José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde, fala sobre a Saúde na Justiça

A retomada, no Supremo Tribunal Federal (STF), do julgamento de processos sobre fornecimento de medicamentos de alto custo pelo Sistema Único de Saúde (SUS) reacende a polêmica sobre a judicialização da Saúde, no momento em que a sustentabilidade financeira do SUS é ameaçada pelo Novo Regime Fiscal, que impõe teto para os gastos públicos nos próximos 20 anos, por meio da PEC 241.
Prática crescente no Brasil, a judicialização da Saúde onera União, estados e municípios e desafia a organização do sistema de saúde. Segundo a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), somente na esfera federal, os gastos do Ministério da Saúde com ações judiciais cresceram 129% entre 2012 e 2014, passando de R$ 367 milhões para R$ 844 milhões, com o valor acumulado de R$ 1,76 bilhão nos três anos. Nesta entrevista, o sanitarista José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde e membro titular da Academia Nacional de Medicina, discute os impactos da judicialização para a universalidade e a equidade do SUS.
O sanitarista José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde, discute os impactos da judicialização para a universalidade e a equidade do SUS (foto: Saúde Amanhã)

A oferta de medicamentos de alto custo pelo SUS está em julgamento no STF. Qual o seu posicionamento sobre o assunto?
JT: É um tema polêmico, que envolve três dimensões: o direito à saúde garantido pela constituição, as necessidades em saúde definidas a partir de critérios e protocolos, e o desejo em saúde socialmente construído.

Apoiados no direito constitucional à saúde, cidadãos recorrem à Justiça para reivindicar produtos que estão em falta no SUS, terapias aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que ainda não foram incorporadas pelo sistema de saúde e tratamentos experimentais, ainda sem a devida comprovação de eficácia e segurança, que não necessariamente trarão benefícios ou melhorias para o paciente. Em muitas situações, as medidas terapêuticas defendidas por especialistas, por grupos de defesa dos direitos dos pacientes e pela indústria farmacêutica são insustentáveis. É preciso haver critérios.

O que ocorre, hoje, é que a judicialização foi judicializada. É lamentável que essa questão, que envolve não apenas aspectos políticos e financeiros, mas também éticos e morais, esteja sendo decidida no âmbito do Judiciário. O Congresso Nacional aprovou, em 2011, a lei 12.401, que determina o conjunto de diretrizes e princípios para o fornecimento de medicamentos e tecnologias de alto custo pelo SUS. Desde então, essa lei deveria ter sido aperfeiçoada para que nós pudéssemos ter resolvido essa questão no âmbito da Saúde ou, ao menos, encaminhado uma solução possível.

O que determina a lei 12.401 e por que ela não dá conta das questões que envolvem a judicialização da Saúde?
JT: A lei 12.401 dispõe sobre a assistência terapêutica e a inclusão de tecnologias no sistema de saúde. Para isso, cria a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), responsável por assessorar o Ministério da Saúde nas atribuições relativas à incorporação, exclusão ou alteração de tecnologias no SUS, bem como na constituição ou alteração de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas. Isso é fundamental, porque a compra pública precisa ter critérios. É muito ruim um cenário em que, por determinação legal, qualquer tecnologia deva ser garantida, pelo SUS, a todos os cidadãos, por meio de recursos públicos.

Eu defendo que a Conitec seja ampliada e fortalecida para arbitrar sobre toda e qualquer tecnologia que venha a ser incorporada não apenas no SUS, mas também nos setor de saúde suplementar. Essas decisões devem ser baseadas por estudos de universidades e centros de pesquisa que garantam qualidade à decisão sobre o que deve ou não ser incorporado à lista de produtos do SUS. Tratamentos experimentais ou em fase de validação não podem ser oferecidos com recursos públicos, exceto quando os pacientes estão envolvidos no protocolo de pesquisa, devidamente acompanhados pelo comitê de ética. Por isso, todos os novos recursos e tecnologias, antes de serem incorporados pelo sistema de saúde, devem ser avaliados pela Conitec.
É assim em vários sistemas de saúde no mundo. O da Inglaterra, que nos inspira, tem um instituto que dá as diretrizes e orientações sobre o que será ou não incorporado para todos no sistema inglês. Precisamos caminhar nesse sentido, aperfeiçoar a Conitec, dar mais transparência aos processos de tomada de decisão. Mas é preciso haver critérios, que sejam adequados ao grau de desenvolvimento do país e ao orçamento do governo.
A flexibilização de critérios para o fornecimento de medicamentos pelo SUS, por exemplo, com a liberação de produtos aprovados apenas no país de origem, resolveria o problema?
JT: A proposta de liberar no Brasil o uso de medicamentos e tecnologias aprovados somente em seu país de origem não é razoável. Eu defendo a existência de critérios e diretrizes para a incorporação de medicamentos, tecnologias e insumos ao SUS e não abriria mão, em hipótese alguma, da regulação por meio da Anvisa. Nossa agência regulatória é reconhecida internacionalmente e tem protocolos de cooperação com a Agência Europeia de Medicamentos e o Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos. Portanto, deve ser respeitada. Há, ainda, outras questões. Ao registrar um produto, a Anvisa atesta a sua segurança para uso humano. Ela não avalia eficácia terapêutica ou a relação custo-efetividade. Esta análise deve ser realizada por outros órgãos, como universidades e centros de pesquisa.

Também é constrangedora a proposta do Estado dividir com a família do paciente o custo de seu tratamento. O que está em discussão é o direito à saúde, o acesso da população aos serviços e produtos e o financiamento público. Não vejo sentido em jogar sobre os ombros das famílias esta responsabilidade. Isso pode levar a mais distorções, inclusive do ponto de vista operacional do sistema de saúde. Acredito que esta proposta não será aprovada. O mais prudente é garantir a atuação da Conitec como órgão de regulação da incorporação ou não das tecnologias que o Estado brasileiro venha a financiar. Podemos discutir se, hoje, a Conitec cumpre esta função, se ela deveria ser aperfeiçoada e ampliada. Podemos discutir se sua composição é adequada, como dar mais transparência aos processos, como publicizar o debate para que a sociedade possa acompanhá-lo. Tudo isso seria razoável.
Quais as consequências da judicialização para a sustentabilidade do SUS, com universalidade e equidade?
JT: É verdade que tecnologias custo-efetivas deixam de ser incorporadas ao SUS por questões financeiras. Isso acontece porque vivemos uma situação de restrição financeira no sistema de saúde. Mas são exceções. E muitos dos produtos que são alvo de judicialização não constam na lista de produtos prioritários do SUS. Não existe nenhum sistema de saúde no mundo capaz de incorporar todas as novidades lançadas permanentemente no mercado de tecnologias, medicamentos e materiais especiais. Até porque muitas delas não se justificam, do ponto de vista da saúde pública.

A polêmica não é em relação a medicamentos ou tecnologias que estão na lista de produtos prioritários do SUS e que por algum motivo não são fornecidos. Grande parte dos processos de judicialização diz respeito a novas tecnologias que prometem uma série de efeitos terapêuticos inovadores, nem sempre comprovados. São esses tratamentos, cujo caráter inovador pode e deve ser relativizado, que custam milhões de reais por ano, para tratar um paciente.
É preciso considerar, também, que são os extratos mais bem formados e informados da população, que tem acesso a referências sobre tratamentos mais especializados, que recorrem à judicialização para ter acesso a tecnologias de ponta que ainda não estão reguladas e disponíveis no Brasil. Isso aprofunda as iniquidades em saúde. Por isso, a Conitec é tão importante. Porque é preciso garantir que todas as pessoas tenham o mesmo nível de acesso ao sistema de saúde. Nesse sentido, a regulação da Conitec deve contemplar também o setor de saúde suplementar. As mesmas regras devem valer para todos.
Como a decisão do STF impactará a organização do sistema de saúde, em médio e longo prazo?
JT: É muito preocupante que essa discussão tenha saído do âmbito da política, da discussão da sociedade com os representantes que o povo elegeu para legislar, para o STF. O orçamento do sistema de saúde é limitado, no Brasil. Se uma determinação legal obrigar o fornecimento de tecnologias de altíssimo custo, esses recursos serão retirados de outros programas e políticas. Assim, tecnologias mais custo-efetivas e comprovadamente eficazes podem deixar de ser oferecidas para um grande número de pessoas, para que se possa disponibilizar tecnologias de eficácia e efetividade duvidosas para um pequeno grupo de pacientes. Este é o debate: se prevalecerá o interesse individual ou o coletivo.

Se chegarmos a uma decisão baseada no bom senso, com o estabelecimento de critérios e regras que garantam o direito e o acesso às tecnologias comprovadamente efetivas, a custos compatíveis, caminharemos para um cenário mais equilibrado. No entanto, se a direção for no sentido de liberação indiscriminada caminharemos para o completo colapso econômico-financeiro do sistema de saúde, nas dimensões pública e privada
AFN

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