Pacientes infectados pelo
vírus da dengue poderão contar, no futuro próximo, com exames de sangue capazes
de identificar se a doença pode evoluir para o tipo mais letal, a dengue
hemorrágica. Além dos sintomas clássicos de febre e dores pelo corpo, o desfecho
hemorrágico da doença provoca o sangramento de pequenos vasos da pele e de
outros órgãos.
Além de abrir caminho para que
a evolução da doença possa ser identificada previamente por exames de sangue,
compreensão do mecanismo de atuação do vírus na febre hemorrágica terá impacto
em novos tratamentos e vacinas
Estudo realizado por
pesquisadores da Faculdade de Ciências Farmacêuticas e do Instituto de Biologia
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Faculdade de Medicina de
São José do Rio Preto (Famerp) – com apoio da FAPESP – identificou
lipídios que funcionam como marcadores biológicos da dengue hemorrágica. Para
tanto, os autores verificaram a ação de mais de 4 mil moléculas no plasma
humano a partir de espectrometria de massas.
Os pesquisadores elucidaram o
papel determinante da fosfotidilcolina, o fosfolipídeo mais comum nos tecidos
humanos, no desbalanço da cascata de coagulação – processo cujo objetivo é
barrar hemorragias a partir de moléculas como plaquetas e fibrinogênio e da formação
do coágulo sanguíneo –, resultando na dengue hemorrágica.
Em artigo publicado na
revista Scientific Reports, o grupo descreve a evolução da
doença no plasma de 20 pacientes que apresentaram dengue hemorrágica e foram
tratados no Hospital de Base, ligado à Faculdade de Medicina de Rio Preto
(Famerp). O estudo contou também com um grupo controle composto pelo plasma
sanguíneo de 10 pacientes saudáveis e não infectados pelo vírus da dengue.
“Conseguimos identificar, pela
primeira vez, que o vírus da dengue ajuda na fosforilação [adição de grupos
fosfato nas proteínas], ocasionando o aumento das fosfotidilcolinas no sangue e
gerando o desbalanço natural na via de coagulação. Esses lipídios atuam contra
a coagulação e, portanto, acabam ocasionando a febre hemorrágica”, disse Rodrigo
Ramos Catharino, professor na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da
Unicamp e um dos autores do artigo.
O estudo é resultado do
doutorado de Carlos Fernando Odir Rodrigues Melo, que teve Bolsa da
FAPESP e orientação de Catharino.
O desbalanço da cascata de
coagulação pode ocorrer por outros motivos, como hemofilia. “Mas não sabemos se
as moléculas intermediárias desses outros processos são as mesmas dos casos da
dengue hemorrágica. Podem ser moléculas diferentes dos lipídios verificados no
nosso estudo, marcadores específicos produzidos pelo vírus da dengue”, disse
Catharino.
Ao analisar o plasma de
pacientes, o grupo conseguiu acompanhar a evolução da dengue para a febre
hemorrágica, o que possibilitou a compreensão do mecanismo da doença. De acordo
com o estudo, as alterações lipídicas nas células infectadas pelo vírus da
dengue se tornam evidentes quando o vírus assume o controle do metabolismo
celular, modulando os mecanismos de autofagia [degradação das estruturas do
meio intracelular] para atender às necessidades da replicação viral.
Os cientistas também
conseguiram observar a atuação de moléculas intermediárias, como o
diacidiglicerol (DAG) e o inositol trifosfato (IP3). De acordo com a hipótese
levantada, o principal impacto na evolução da doença para a febre hemorrágica
estaria na atuação do vírus na fosforilação, sobretudo nas quinases – proteínas
cuja função é formar um derivado fosfatado a partir de outras proteínas –, o
que provoca um desbalanço da coagulação.
“Conseguimos acompanhar o
mecanismo de desenvolvimento da doença no plasma dos pacientes e identificar
marcadores de evolução justamente quando há queda de plaquetas no sangue. A
alta da fosfotidilcolina é, portanto, um indicador de que vai ocorrer febre
hemorrágica. Existe um grande balanço da cascata de coagulação que é alterado
pelo vírus a partir de sua atuação sobre várias moléculas intermediárias
(lipídios) para que a coagulação não aconteça”, disse Catharino.
Processo da doença
Além de identificar
biomarcadores para a dengue hemorrágica e possibilitar que, no futuro, a doença
seja identificada a partir de exames de sangue, o estudo também permitiu a
maior compreensão do mecanismo de atuação do vírus da dengue na febre
hemorrágica.
Embora a estrutura e a
composição do vírus da dengue (e seus quatro sorotipos) tenham sido amplamente
estudadas, o fenótipo de infecção e a atuação de pequenas moléculas, como é o
caso dos lipídios, eram ainda pouco estabelecidos.
A dengue é uma doença aguda de
evolução rápida que gera febre e dores pelo corpo. De acordo com a Organização
Mundial da Saúde (OMS) a doença afeta cerca de 390 milhões de pessoas no mundo
todos os anos. Uma parcela pequena dos casos de dengue pode evoluir para a
febre hemorrágica, muito mais letal. Geralmente, embora não se saiba o motivo,
esses casos são de crianças e pessoas infectadas mais de uma vez pelos
sorotipos do vírus da dengue.
“Sabe-se que quanto antes a
febre hemorrágica for identificada, maior a chance de sobrevida do paciente.
Porém, como ainda não é possível saber quando a doença vai evoluir, é muito
comum que pacientes cujo quadro da doença evolui para a febre hemorrágica sejam
mandados para casa, antes de a situação ser agravada”, disse.
De acordo com os
pesquisadores, a descoberta do mecanismo que leva à febre hemorrágica pode ter
impacto no desenvolvimento de novos tratamentos e vacinas.
“Nosso objetivo principal é
desenvolver os testes que indicam a ocorrência de dengue hemorrágica e também
identificar melhor o processo da doença. Ela demora três, quatro ou mais dias
para se manifestar? Nem isso sabemos ao certo. Outra linha interessante é
correlacionar este mecanismo que descobrimos com vacinas. Atualmente uma das
dificuldades de imunização é justamente a dengue hemorrágica”, disse Catharino.
De acordo com o que se sabia
na literatura científica, o desfecho da infecção pelo vírus da dengue depende
de inúmeros fatores relacionados ao início da infecção viral, como a carga
viral, presença de anticorpos não neutralizantes, recrutamento de células e
produção de mediadores imunes.
“Esses fatores determinam se o
ambiente é favorável ou desfavorável para a progressão da doença, controlando a
infecção viral ou prejudicando a reação inflamatória, associada à
permeabilidade vascular. No entanto, a falta de marcadores imunológicos confiáveis
e outros metabólicos para as respostas protetivas ou patológicas era uma lacuna
importante que dificultava o desenvolvimento de novos testes diagnósticos ou
candidatos à vacina”, afirmam os pesquisadores no artigo.
O artigo The role of
lipids in the inception, maintenance and complications of dengue virus
infection (doi: 10.1038/s41598-018-30385-x), de Carlos Fernando Odir
Rodrigues Melo, Jeany Delafiori, Mohamad Ziad Dabaja, Diogo Noin de Oliveira,
Tatiane Melina Guerreiro, Tatiana Elias Colombo, Maurício Lacerda Nogueira,
Jose Luiz Proenca-Modena & Rodrigo Ramos Catharino, pode ser lido em www.nature.com/articles/s41598-018-30385-x .
Maria Fernanda Ziegler
| Foto: James Gathany / CDC, Agência FAPESP
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