Imara Moreira Freire, Sheila
Moura Pone, Milena da Cunha Ribeiro, Mitsue Senra Aibe, Marcos Vinicius da
Silva Pone, Maria Elisabeth Lopes Moreira, Leila Dupret
RESUMO
Este artigo tem como objetivo
discutir os impactos na promoção da saúde mental nas famílias a partir do
diagnóstico de infecção pelo vírus Zika na gestante e/ou a presença da síndrome
congênita do Zika vírus (SCZV) na criança.
Busca ainda favorecer uma
reflexão a respeito da construção do vínculo mãe-bebê nesse cenário. A
relevância do estudo se dá não somente pelo fato de a SCZV ser ainda pouco
conhecida, com uma enorme capacidade de dispersão e com muitas dúvidas quanto
às consequências físicas e ao impacto psíquico causado, como também pela
urgência em ser dada às famílias e/ou cuidadores diretrizes de acolhimento e
alternativas para lidar com a doença.
O estudo foi desenvolvido em
ambulatório específico para o cuidado de crianças com SCZV da Unidade de
Doenças Infecciosas em Pediatria de um hospital terciário do Sistema Único de
Saúde (SUS) no Rio de Janeiro, Brasil. A equipe é caracterizada como
multiprofissional e cada um de seus integrantes faz uma avaliação com base no
campo de saber específico. A pesquisa de cunho qualitativo foi realizada
valendo-se da observação participante, e a análise dos dados revelou que a
utilização das redes sociais virtuais, as quais independentemente dos caminhos
seguidos pela medicina, funcionam como veículo de comunicação e discussão
coletiva de diferentes vivências, no intuito de compartilhar estratégias para a
superação de impossibilidades diagnosticadas.
INTRODUÇÃO
A descrição de uma nova e
grave infecção congênita, a síndrome congênita do Zika vírus (SCZV) no Brasil,
no final de 2015, desencadeou uma grande mobilização do aparato
técnico-científico, da sociedade e da mídia. O ineditismo do agravo carreou
dúvidas e expectativas na população. Sentimentos como medo e ansiedade passaram
a fazer parte do cotidiano das gestantes e suas famílias.
Com base na noção de
integralidade que pertence aos fundamentos do Sistema Único de Saúde (SUS)
houve necessidade de responder a esse sofrimento, incorporando ações para a
promoção da saúde mental das famílias. Destarte, o conceito de Saúde Mental
admitido no trabalho está ligado à visão de ser humano, e conforme lembra
Dimenstein 1 é possível olhar o sujeito de forma integral, reconhecendo e
respeitando os aspectos biopsicossociais. Desse modo, compreender o sofrimento
que a doença desencadeia no paciente e sua família contribui para a atenção e o
cuidado nos atendimentos de saúde 2.
Nesse contexto, a relevância
do estudo se dá não somente pelo fato de a SCZV ser ainda pouco conhecida, com
uma enorme capacidade de dispersão e com muitas dúvidas quanto às consequências
físicas e ao impacto psíquico causado, como também pela urgência em ser dada às
famílias e/ou cuidadores diretrizes de acolhimento e alternativas para lidar
com a doença. Então, a escuta atenta às queixas, medos, angústias e dúvidas
gerados pela doença devem estar enfatizadas no trabalho do profissional de
saúde mental, que amplia seu olhar para além da preocupação com o quadro
orgânico apresentado. Dessa maneira, Bezerra Júnior 3 (p. 154) afirma que “há
um sentido oculto no sintoma, e tratar significa revelar esta razão escondida
da doença e assim permitir ao paciente encontrar soluções mais adequadas para
seus conflitos”.
Acrescenta-se ainda que,
diante da não possibilidade de cura disponível para a SCZV, um estado de saúde
crônico se configura, conforme a definição de Barsaglini 4. Nessa perspectiva,
os adoecimentos crônicos podem trazer consequências psicológicas e sociais,
pois a necessidade contínua de cuidados, retornos periódicos aos serviços de
saúde, tendem a desestabilizar a rotina e impõem aprendizado e convivência com
a condição estabelecida.
Tendo em vista os argumentos
mencionados anteriormente, este artigo tem como objetivo discutir os impactos
na promoção da saúde mental nas famílias a partir do diagnóstico de infecção
pelo vírus Zika na gestante e/ou a presença da SCZV na criança.
Método
A pesquisa, de cunho
qualitativo, foi realizada com base na observação participante, pois, como
afirma Haguette 5, esta técnica busca mais os sentidos do que as aparências das
ações humanas.
O estudo foi desenvolvido em
ambulatório específico para o cuidado de crianças com SCZV da Unidade de
Doenças Infecciosas em Pediatria de um hospital terciário do SUS no Rio de
Janeiro, Brasil. A equipe de trabalho caracterizou-se como multiprofissional e
cada um de seus integrantes fez uma avaliação baseando-se em seu campo específico
de saber.
Assim, de abril a julho de
2016, foram atendidas 20 famílias com bebês de idades variando de dois a oito
meses de vida, sendo 12 do sexo feminino e oito do masculino. Nesses
atendimentos, nove mães estavam acompanhadas do pai da criança, dez estavam com
outros familiares (sua mãe, tia, irmã) ou amiga e uma estava sozinha nas
consultas. Das famílias, dez participaram uma vez, três delas tiveram dois
atendimentos, outras três vieram em três encontros e quatro famílias estiveram
em mais de quatro interconsultas.
É importante destacar que
parte das famílias incluídas nesta pesquisa já havia sido entrevistada por
mídias televisivas, jornais e emissoras de rádio sobre como lidam com os
impactos trazidos pelas adversidades da SCZV. Algumas delas são conhecidas por
toda comunidade onde moram e seus filhos apontados como “os filhos da Zika”,
tamanha é a exposição midiática causada pela epidemia, fato também descrito por
Diniz 6.
Os dados referentes à saúde
mental, coletados durante os atendimentos, foram registrados em diário de campo
e estavam vinculados às interconsultas com os demais profissionais de saúde.
Ademais, as conversas estabelecidas nos atendimentos possibilitaram às famílias
entrarem em contato com campos significativos de suas próprias experiências, o
que Fernando Rey 7conceituou de “Dinâmica Conversacional”, a qual viabiliza a
expressão de necessidades e de conflitos dos sujeitos, facilitando, com base
nas emoções suscitadas, o surgimento de novos processos simbólicos.
A análise dos dados foi
realizada sob a égide da Epistemologia Qualitativa, definida por Rey 7 como o
encontro de três princípios: o conhecimento construtivo-interpretativo; a
singularidade; e o diálogo. A dinâmica desses princípios, conjugada com a
observação participante, permitiu a interpretação do pesquisador sobre as falas
dos sujeitos, as quais culminaram em configurações. Essas, em suas
convergências, resultaram nas Unidades de Sentido.
O estudo está de acordo com a
Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. É um subprojeto do estudo:
Exposição Vertical ao Zika Vírus e suas Consequências para o
Neurodesenvolvimento Infantil, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com
Seres Humanos do nstituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do
Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz (CAE nº
52675616.0.0000.5269).
RESULTADOS
As configurações que emergiram
como manifestação de expressões da subjetividade das famílias dos pacientes com
SCZV foram:
(1) Missão divina: sentimentos
de punição e castigo por ter recebido esta criança, assim como a ideia de ter
sido escolhido por Deus para dar conta de tamanho sacrifício. A experiência
religiosa vivida como uma missão de fé e de redenção;
(2) Participação familiar:
possibilidade de contar, ou não, com a ajuda da família próxima ou ampliada no
cuidado da criança adoecida;
(3) Preconceito: discriminação
do filho pela condição que apresenta e não aceitação de quaisquer opiniões
negativas de outras pessoas;
(4) Relação parental: lidar
com a criança a partir da manifestação de medo, tristeza e incerteza frente ao
diagnóstico;
(5) Rotina de vida e
interferências econômico-financeiras: mudanças no cotidiano familiar,
influências na relação do casal, impedimentos ao acesso de benefícios sociais
e, por vezes, a necessidade de interromper o trabalho para cuidar da criança,
gerando dificuldades de arcar com as despesas;
(6) Impactos midiáticos:
imensa utilização das redes sociais virtuais como meio de apoio e trocas de
informações sobre o desenvolvimento das crianças, referências para tratamentos
e benefícios sociais.
As “unidades de sentido”
construídas com base nessas configurações viabilizaram reflexões acerca das
possibilidades individuais e coletivas de familiares lidarem com o adoecimento
das crianças. E, apesar de estarem bastante resumidas em suas definições, é
possível constatar que os itens 1, 2, 3, 4 e 5 não apresentam novidades quanto
aos cenários semelhantes, de vivência com crianças cronicamente adoecidas. O
que há de novo e específico nessas experiências é a utilização das redes
sociais virtuais (item 6). Pois além de funcionarem como meio de comunicação
entre as famílias e de discussão coletiva de suas diferentes experiências,
serviram para compartilhar estratégias para a superação de dificuldades. Nesse
sentido, a promoção da saúde mental das famílias não esteve apenas circunscrita
ao atendimento específico das interconsultas, mas também ao suporte oferecido
pelas redes sociais virtuais.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A PESQUISA
Este artigo objetivou
apresentar as reflexões iniciais pertinentes ao campo da saúde mental, que
emergiram durante as conversas nos atendimentos de cuidadores das crianças com
SCZV. Além de questões já conhecidas, como o preconceito, a relação parental e
as mudanças na rotina de vida, as famílias trouxeram a importância do papel da
mídia e das redes sociais. Em um momento inicial, as famílias se sentiram
amparadas pelo grande interesse da mídia, que favoreceu a criação de uma rede
de atendimento de saúde para as crianças com SCZV. Entretanto, como o interesse
da mídia diminuiu, as famílias se sentiram desamparadas e passaram a ter de
enfrentar as dificuldades relacionadas ao adoecimento crônico. Contudo, nas
redes sociais virtuais encontraram apoio e referências para lidar com os
desafios do cotidiano no decorrer do tempo.
Nesse sentido, os pais se
reconhecem como uma comunidade de vítimas da epidemia, sendo comum entre muitos
a necessidade de ficar integralmente com o filho. A partir da rotina exaustiva
de consultas e exames, um número significativo de pais precisou abrir mão da
jornada de trabalho ou, até mesmo, perderam o emprego. Essa nova condição
familiar se mostrou interferente na relação do casal em suas subjetividades e
vida conjugal.
Outro aspecto observado foi
que os pais se apropriaram do linguajar médico para descrever episódios de
convulsão, as malformações e o estado clínico de seus filhos. O que pode
apontar para a dificuldade desses pais em estabelecer um vínculo afetivo com a
criança, uma relação com o bebê que não seja por meio da doença, colocando em
primeiro lugar os cuidados médicos e em segundo plano as atitudes próprias da
maternidade como acarinhar, afagar, beijar e brincar. Essa postura pode advir
da dificuldade de aceitação das limitações da criança e da percepção do
desenvolvimento diferenciado deste bebê, influenciando diretamente a construção
de uma relação apropriada. A “aceitação do bebê” pelo cuidador é uma questão
fundamental que não pode ser negligenciada, pois é a partir desse processo que
o vínculo afetivo pode ser estabelecido.
Embora este estudo seja de
caráter preliminar e deva ser aprofundado em pesquisas futuras, constatou-se
que é de suma importância uma política pública que atenda as diferentes demandas
advindas da SCZV, incluindo a saúde mental, com a promoção de ações que possam
favorecer o desenvolvimento da criança.
Referências
1.Dimenstein MDB. O psicólogo
nas Unidades Básicas de Saúde: desafios para a formação e atuação
profissionais. Estud Psicol (Natal) 1998; 3:53-81.
2.Ministério da Saúde. Apoio
psicossocial a mulheres gestantes, famílias e cuidadores de crianças com síndrome
congênita por vírus zika e outras deficiências: guia de práticas para
profissionais e equipe de saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2017.
3.Bezerra Júnior B.
Considerações sobre terapêuticas ambulatoriais em saúde mental. In: Tundis SA,
Costa NR, organizadores. Cidadania e loucura: políticas de saúde mental no
Brasil. Petrópolis: Editora Vozes; 1992. p. 134-69.
4.Barsaglini RA. Adoecimentos
crônicos, condições crônicas, sofrimentos e fragilidades sociais: algumas
reflexões. In: Canesqui AM, organizador. Adoecimentos e sofrimentos de longa
duração. São Paulo: Editora Hucitec; 2013. p. 70-103.
5.Haguette TMF. Metodologias
qualitativas na Sociologia. Petrópolis: Editora Vozes; 1995.
6.Diniz D. Vírus Zika e
mulheres. Cad Saúde Pública 2016; 32:e00046316.
7.Rey FG. Pesquisa qualitativa e
subjetividade. São Paulo: Thomson Pioneira; 2005.
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