Uma nova molécula, sintetizada em laboratório,
figura como forte candidata para o desenvolvimento de fármaco contra a malária.
A possibilidade de um novo medicamento traz esperança a milhares de pacientes
infectados pelo Plasmodium falciparum, um dos protozoários causadores da
malária, sobretudo pelo fato de os testes mostrarem que a molécula foi capaz de
matar, inclusive, a cepa resistente aos antimaláricos convencionais.
Em testes realizados em camundongos e em cultivo in
vitro, molécula desenhada no Centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade e
Fármacos (CEPID-FAPESP) foi capaz de matar o parasita da malária (imagem:
CIBFar)
A molécula apresenta baixa toxicidade e alto poder
de seletividade, atuando apenas no protozoário e não em outras células do organismo
do hospedeiro. É derivada da classe das marinoquinolinas, com destacada
atividade biológica, e foi desenvolvida no Centro de Pesquisa e Inovação em
Biodiversidade e Fármacos (CIBFar) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) financiado
pela FAPESP. O estudo também recebeu o apoio financeiro do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Instituto Serrapilheira.
Em artigo publicado no Journal
of Medicinal Chemistry, os pesquisadores descrevem a ação inibitória da
molécula na fase sanguínea e hepática do ciclo assexuado do protozoário,
responsável pelos sinais e sintomas da doença.
Além dos estudos realizados com cepas de
cultivo in vitro, os pesquisadores também testaram a molécula em
camundongos. “Nos testes, já no quinto dia de estudo a molécula conseguiu
reduzir 62% da quantidade de parasitas no sangue (parasitemia). Ao fim dos 30
dias de teste, todos os camundongos que ingeriram doses da molécula
sobreviveram”, disse Rafael Guido, professor no Instituto de Física de São
Carlos (IFSC) da Universidade de São Paulo (USP) e um dos autores do artigo,
à Agência FAPESP.
Os testes foram realizados em modelo animal
infectado por P. berghei, visto que o P. falciparum não infecta
camundongos.
Inspiração
vinda do mar
A molécula candidata a virar fármaco foi
sintetizada tendo como base compostos naturais encontrados em bactérias
marinhas, conhecidas como marinoquinolinas, que foram avaliadas quando
descobertas contra a malária, doença de chagas e tuberculose. No entanto, os
produtos naturais apresentaram apenas ação de moderada a fraca contra os
patógenos.
“O núcleo dessas moléculas, conhecido por
pirroloquinolina [que contém o núcleo 3H-pirrolo[2,3-c]quinolínico], nos chamou
a atenção. Esta é uma estrutura rara dentre produtos naturais e pouco abordada
na literatura científica”, disse Carlos Roque Duarte Correia, professor no Instituto de
Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Em 2012, o grupo de pesquisadores da Unicamp
publicou uma das primeiras sínteses das marinoquinolinas naturais na
literatura.
“Durante o trabalho de síntese percebemos o enorme
potencial farmacológico dessas moléculas. Fizemos então novas modificações
estruturais na parte pirroloquinolina, empregando eficientes processos
catalíticos, e a partir da estrutura obtida criamos uma nova molécula com
potência ampliada em centenas de vezes contra o P. falciparum e sem
aumentar sua toxicidade”, disse Guido.
Duarte Correia conta que, no estudo, foram testadas
as 50 primeiras moléculas desenvolvidas a partir das marinoquinolinas. “Esse
trabalho, no entanto, não para nessa publicação. Temos ainda uma série de
outros compostos sendo desenvolvidos”, disse.
O grupo está caracterizando ainda o potencial dessa
classe para tratar a malária causada por Plasmodium vivax, a forma da
malária mais prevalente no Brasil, e está desenvolvendo a parte de
farmacocinética do projeto – a reação do organismo ao medicamento.
“Se as propriedades do composto, como solubilidade,
absorção, distribuição, metabolismo e excreção não forem adequadas, ele pode
ser acumulado no organismo e se tornar tóxico para o paciente, o que
inviabilizaria o medicamento. Após terminarmos essa etapa, nosso objetivo é
fazer testes pré-clínicos e clínicos”, disse Guido.
Morto
de fome
Os mecanismos de ação da molécula ainda não são
totalmente conhecidos. Sabe-se, porém, que entre eles está uma via clássica de
inibição do parasita, conhecida como metabolismo de hemozoína.
Essa estratégia consiste em manter baixa a
concentração desse composto que é tóxico para o parasita. Quando o parasita se
instala no hospedeiro, ele infecta primeiramente as hemácias (glóbulos
vermelhos), pois a hemoglobina presente nessas células é a única fonte de
energia que ele tem para consumir. Mas a hemoglobina contém uma molécula de
cofator ligada em sua estrutura chamada grupo heme, que na forma livre – quando
está desligado da hemoglobina – é altamente tóxico para os parasitas.
Anos de evolução deram ao parasita a capacidade de
desenvolver um mecanismo que polimeriza esse grupo, livrando-se assim de sua
toxicidade. “Essa estratégia do parasita de obter energia sem se intoxicar
funciona mais ou menos como jogar a poeira para baixo do tapete. O grupo heme
continua lá, mas em uma forma polimerizada e insolúvel que não é tóxica para o
parasita”, disse Guido.
A molécula desenvolvida pelo grupo de pesquisadores
do CIBFar atua, entre outros mecanismos, impedindo essa polimerização e, assim,
o parasita é intoxicado pelo grupo heme.
“A molécula atua impedindo a formação do polímero
hemozoína, que é a forma que o parasita desenvolveu para se livrar da
toxicidade do grupo heme. Ao impedir a formação da hemozoína o parasita morre”,
disse Célia Regina Garcia, professora na Faculdade de
Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo e também autora do artigo.
Garcia trabalhou em parceria com o CIBFar e foi responsável pelos testes do
mecanismo de ação da molécula no parasita.
Cepas
resistentes
Outro indicador de que a derivada de
marinoquinolina é forte candidata a fármaco está no fato de ela conseguir matar
cepas resistentes a três dos principais medicamentos contra a malária:
cloroquina, pirimetamina e sulfadoxina.
“A cloroquina tem sido pouco usada para o
tratamento da malária falciparum, a malária responsável pelos casos mais graves
e fatais da doença, e a expectativa é que a artemisinina siga o mesmo caminho.
Atualmente, a artemisinina é o principal fármaco em uso para o tratamento da
malária. Embora ainda eficaz, é um fármaco com os anos contados por causa da
resistência, e essas cepas resistentes estão se alastrando em toda a Ásia.
Existe, portanto, uma preocupação mundial em desenvolver fármacos para a
malária e eu acho que o Brasil é um país que tem potencial de emergir nessa
área”, disse Garcia.
De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde
(OMS) a malária mata hoje 445 mil pessoas por ano. “Se hoje, com o medicamento
eficaz, temos um número tão alto de mortes, se não houver o desenvolvimento de
novos fármacos no futuro a malária pode matar muito mais. É a parasitose que
mais mata no mundo ainda que atualmente tenha tratamento relativamente eficaz”,
disse Guido.
O artigo Discovery of Marinoquinolines as
Potent and Fast-Acting Plasmodium falciparum Inhibitors with in Vivo Activity (doi:
10.1021/acs.jmedchem.8b00143), de Anna Caroline Campos Aguiar, Michele
Panciera, Eric Francisco Simão dos Santos, Maneesh Kumar Singh, Mariana Lopes
Garcia, Guilherme Eduardo de Souza, Myna Nakabashi, José Luiz Costa, Célia R.
S. Garcia, Glaucius Oliva, Carlos Roque Duarte Correia e Rafael Victorio
Carvalho Guido, pode ser lido no Journal of Medicinal Chemistry em https://pubs.acs.org/doi/10.1021/acs.jmedchem.8b00143 .
Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP
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