Um estudo realizado por mais
de dois anos com cerca de 160 pacientes aponta que o medicamento ASMQ, composto
pela combinação dos fármacos artesunato e mefloquina, é altamente eficaz para o
tratamento dos casos de malária provocados pelo Plasmodium falciparum.
A pesquisa foi realizada no Vale do Juruá, no Acre, maior foco da doença no
Brasil. Pacientes recrutados no município de Cruzeiro do Sul foram acompanhados
por 42 dias após o início da terapia.
Os exames apontaram rápida
cura clínica e parasitológica em todos os casos. Análises moleculares também
descartaram a presença, entre os parasitos, de marcadores genéticos associados
à resistência aos fármacos. Os resultados foram publicados na revista científica The
American Journal of Tropical Medicine and Hygiene. Para os autores, os
achados sustentam a possibilidade de adoção do ASMQ como primeira linha no
tratamento da forma não grave da malária causada por P. falciparum na
região, especialmente considerando a vantagem de seu esquema de administração.
“Verificamos alta eficácia e
efeitos colaterais mínimos, com boa aceitação do tratamento pelos pacientes. O
medicamento usado atualmente para tratamento da malária na maior parte do país
– formulação que combina os fármacos artemeter e lumefantrina – exige
administração de até quatro comprimidos duas vezes ao dia por três dias. Já a
terapia com ASMQ demanda administração de no máximo dois comprimidos uma única
vez ao dia por três dias. Esse esquema facilita a aceitabilidade e a
administração supervisionada, importantes para atingir a meta de eliminação
do P. falciparum no Brasil”, afirma Simone Ladeia Andrade,
pesquisadora do Laboratório de Doenças Parasitárias do Instituto Oswaldo Cruz
(IOC/Fiocruz), coordenadora e primeira autora do estudo. O trabalho integra as
ações da Rede Amazônica de Vigilância da Resistência às Drogas Antimaláricas
(RAVREDA/AMI) e foi realizado pelo IOC em parceria com o Instituto de Ciências
Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), com apoio da Organização
Pan-Americana de Saúde (Opas), do Programa Nacional de Controle da Malária do
Ministério da Saúde (PNCM) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo (Fapesp).
Terapia combinada
Desenvolvido pelo Instituto de
Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos/Fiocruz), em parceria com a organização
sem fins-lucrativos Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi,
na sigla em inglês), o ASMQ segue a recomendação da Organização Mundial da
Saúde (OMS) para o tratamento da malária provocada pelo P. falciparum. A
formulação combina um derivado da artemisinina – o artesunato – com um
antimalárico de efeito prolongado – a mefloquina. O objetivo é aumentar a
chance e velocidade de cura e reduzir a possibilidade de desenvolvimento de
resistência aos componentes da combinação: os derivados da artemisinina possuem
ação potente e rápida, eliminando em curto período a maior parte dos parasitos,
enquanto os fármacos associados permanecem por mais tempo no organismo,
combatendo os possíveis micro-organismos restantes.
O ASMQ integra as listas de
medicamentos essenciais da OMS para adultos e crianças. No sudeste asiático, a
combinação é fabricada e comercializada pela empresa indiana Cipla, que recebeu
transferência de tecnologia de Farmanguinhos. Já na América Latina, alguns
países têm acesso ao fármaco por meio de doações feitas pela unidade da
Fiocruz. Em setembro, o Complexo Tecnológico de Medicamentos recebeu uma
delegação da OMS para uma auditoria inicial, com o objetivo de pré-qualificar o
medicamento. O processo continuará em 2017, quando está prevista uma segunda
auditoria. A pré-qualificação permitirá a oferta comercial do produto no
mercado internacional.
Resistência descartada
Entre 2006 e 2012, o ASMQ foi utilizado como primeira opção para o tratamento da forma não grave da malária causada pelo P. falciparum no Acre, incluindo o Vale do Juruá. Porém, a preocupação com a possibilidade de resistência dos parasitos à mefloquina levou o Programa Nacional de Controle da Malária a substituir o produto, adotando a formulação composta pelos fármacos artemeter e lumefantrina, que já era usada em outras áreas do país. Assim, o uso do ASMQ ficou restrito a regiões com muito baixa transmissão da doença, como o Mato Grosso. “Tendo a mefloquina já sido utilizada no Brasil por quase duas décadas sem associação com outros fármacos, foi levantada a hipótese de que algum grau de resistência poderia ter sido desenvolvido pelos parasitos nas áreas de maior transmissão. Nos mais de dois anos do estudo no maior foco do Brasil, porém, nenhum caso de falha terapêutica, seja clínica ou parasitológica, foi detectado”, ressalta Simone, acrescentando que o número de pacientes acompanhado foi superior ao que seria necessário para conclusões robustas.
A cura parasitológia foi
avaliada por dois métodos: além do padrão-ouro utilizado nos estudos que
avaliam a eficácia das terapias contra a malária, que consiste na visualização
do parasito pelo exame microscópico de uma gota espessa de sangue, foi adotado
o exame de qPCR (Reação em Cadeia de Polimerase em Tempo Real), que detecta,
amplifica e quantifica o DNA dos patógenos nas amostras, apresentando resultado
mais sensível.
Amostras de sangue dos
pacientes foram coletadas em dez momentos: antes do início do tratamento, nos
três dias após o medicamento começar a ser tomado, sete dias depois do início
da terapia e em intervalos de uma semana a partir de então, até completar 42
dias. No dia seguinte ao término do tratamento, a forma assexuada do P. falciparum
parou de ser detectada nas amostras pela microscopia.
Em um terço dos pacientes, a
presença do P. falciparum foi identificada pela metodologia de qPCR nesse mesmo
momento, porém, ao final do período do estudo, todos apresentavam resultado
negativo no exame. O estudo molecular revelou que os parasitos não apresentavam
marcadores genéticos associados à resistência ao artesunato ou à mefloquina.
Contribuições do estudo
Além de verificar a eficácia
do ASMQ e a viabilidade de seu uso como primeira linha no tratamento da malária
causada pelo P. falciparum em áreas com maior ocorrência de
casos no Brasil, a pesquisa contribuiu com informações sobre a adequação do
esquema terapêutico. Pela análise de microscopia, os cientistas identificaram
que cerca de 20% dos pacientes mantiveram ou passaram a apresentar a forma
sexuada do parasito – chamada de gametócito – no período de acompanhamento, e
somente no 35º dia após o início do tratamento, todos tiveram resultado
negativo no exame. Embora não causem sintomas nos pacientes, os gametócitos são
as formas capazes de infectar o mosquito vetor da doença, contribuindo para sua
disseminação. Por esse motivo, o achado foi comunicado imediatamente ao
Programa Nacional de Controle da Malária, ainda durante o andamento da
pesquisa, o que levou à inclusão da primaquina – fármaco que atua contra os
gametócitos – no protocolo do Ministério da Saúde para tratamento desse tipo de
malária.
Para Simone, a ausência de
resistência à terapia no maior foco nacional de P. falciparum indica
que esse não deve ser um problema no restante da Amazônia ou mesmo em outras
áreas do país. “Cerca de 40% dos casos malária provocados pelo P.
falciparum no Brasil ocorrem no Vale do Juruá. Pela alta endemicidade,
esse seria o local de maior risco para o desenvolvimento de resistência à
mefloquina no país, o que não ocorreu”, pondera a pesquisadora.
Malária no Brasil
A Amazônia concentra mais de
99% dos casos de malária no Brasil, onde a doença pode ser causada por três
espécies de parasitos do gênero Plasmodium: P. vivax, P. falciparum e
P. malariae. Embora não seja o parasito mais frequente, o P.
falciparum preocupa porque é a espécie que provoca a forma mais grave
da doença. Em 2015, o Brasil registrou o menor número de casos de malária dos
últimos 35 anos, com 143 mil notificações, sendo 15,4 mil causadas pelo P.
falciparum. Alinhado com a estratégia da OMS – que estabeleceu o objetivo
de eliminar a malária em 35 países até 2030, além de reduzir em 90% o total de
casos e de mortes no mesmo período –, o Ministério da Saúde lançou em novembro
do ano passado o Plano de Eliminação da Malária no Brasil, que tem como foco
inicial a eliminação do P. falciparum.
Independentemente da espécie
de parasito, a malária é transmitida pela picada de mosquitos infectados do
gênero Anopheles. O principal sintoma é a febre. Além disso, os
pacientes podem apresentar episódios de calafrios, dor de cabeça, dor no corpo
e artralgia – dor nas articulações. O tratamento é feito com medicamentos
antimaláricos que variam conforme a espécie de Plasmodium causadora
da infecção.
Por: Maíra Menezes
(IOC/Fiocruz)*, *Edição: Raquel Aguiar
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