— Diga trinta e três.
— Trinta e três... trinta e
três... trinta e três...
— Respire.
— O senhor tem uma escavação
no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é
possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é
tocar um tango argentino.
Antes da Internet e ainda bem
antes, quando a tuberculose era conhecida como “a peste cinzenta” ou “doença do
peito”, Manuel Bandeira fez poesia diante de uma consulta médica de diagnóstico
irreversível. Digite “Pneumotórax” hoje em sua ferramenta de busca. Você vai
encontrar 133 mil ocorrências para o termo em segundos. Os versos do poeta
brasileiro até aparecerão ali pela oitava página mas antes você terá uma
infinidade de informações sobre essa urgência médica: o que é, quais os
sintomas, como tratar, onde ir, sites úteis, links para consultórios, páginas
tira-dúvidas, dicas de comunidades virtuais. O volume de referências
disponíveis e o hábito cada vez mais comum entre os usuários que acessam a web
para se informar sobre doenças gera excessos que preocupam especialistas ao
mesmo tempo em que modificam a relação médico-paciente, com mais autonomia para
o cidadão.
De acordo com os dados da última TIC Domicílios — pesquisa
realizada anualmente com o objetivo de mapear formas de uso das tecnologias de
informação e comunicação no país —, aproximadamente 46% dos usuários de
internet no Brasil utilizam a rede à procura de informações médicas sobre saúde
em geral e serviços de saúde, numa incidência maior entre mulheres e população
economicamente ativa. Já o buscador Google divulgou recentemente que 1% das
buscas realizadas no site em todo o mundo é sobre sintomas de doenças, fazendo
com que a alcunha de “Doutor Google”, utilizada de forma jocosa pelos usuários
para se referir ao gigante de buscas online, seja bastante apropriada.
Para a médica e pesquisadora
da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz),
Helena Garbin, os indivíduos sempre procuraram informações sobre seu estado de
saúde, mas é inegável que o surgimento da Internet trouxe um aumento
significativo do acesso a informações amplificando assim os reflexos deste
processo e alterando a relação entre os indivíduos. Como lidar com tantas
informações diferentes e frequentemente contraditórias sempre ao alcance de um
clique? Em que informação confiar? Como encarar o fenômeno que gerou até um
termo próprio, os chamados “cibercondríacos”?
Segundo Helena,
cibercondríacos são nada mais nada menos que hipocondríacos com acesso à
internet. “Isto é, a internet e seus incontáveis locais com diferentes formas
de obtenção de informação em saúde são os instrumentos que facilitam a
hipocondria”, diz a pesquisadora, acrescentando que a preocupação maior que se
coloca é em relação à qualidade da informação disponível. Para ela, além de
verificar a credibilidade do conteúdo e das fontes, é importante manter-se
alerta para a origem e reconhecimento do ambiente no qual a página está
hospedada. Quando se fala de informação técnica, uma boa indicação, de acordo
ainda com a pesquisadora, são sites suportados por universidades, hospitais,
instituições da área da saúde e escolas de formação em outras racionalidades
médicas que não a biomedicina a exemplo da homeopatia, acupuntura e
ayurvédica.
“Mas se nos referirmos à
informação dita ‘leiga’, a escolha de parâmetros é bem mais complicada”,
adverte. A pesquisadora chama a atenção para o perigo do autodiagnóstico e da
automedicação, que podem gerar consequências nefastas tanto para os indivíduos
quanto para a saúde pública, uma vez que boa parte dos estudos mostra que não
são adotados critérios durante as buscas. “Uma coisa é, por exemplo, usar uma
medicação sintomática clássica para um aparente resfriado comum e procurar
atendimento se não houver melhora”, diz, sem esquecer que mesmo isso apresenta
riscos. “Outra coisa é juntar sintomas, fazer um diagnóstico na internet e se
tratar por conta própria, ou parar medicação prescrita porque alguém do grupo
de Facebook parou”.
Avaliando-a-qualidade-da-informação
Quem nunca digitou “dengue” ou
“enxaqueca”, descreveu os sintomas de um mal estar ou acessou pelo nome um
medicamento qualquer nos sites de busca? A prática tem se tornado tão frequente
quanto realizar, pela web, uma consulta prévia ou posterior a uma ida ao
médico, fazer comparação entre diagnósticos e buscar uma segunda opinião ainda
que no universo virtual. Para os professores em saúde pública da Universidade de
Brasília (UnB), Ana Valéria Machado Mendonça e Júlio César Cabral, isso abre
espaços para erros sucessivos. “A possibilidade de semelhança entre
diagnósticos pode conduzir a decisões erradas e, consequentemente, a um
agravamento na saúde do indivíduo”, argumentam. Segundo os pesquisadores, a
leitura e apropriação das informações, se não bem orientadas, levam a
interpretações pragmáticas, algo que não cabe em se tratando de saúde. “Além
disso, a adoção de procedimentos, medicamentos e doses erradas no tratamento
pode agravar a doença e favorecer o aparecimento de outros problemas, por
exemplo, intoxicação ou resistência à medicação”.
Atento à qualidade da
informação disponível na web, o Laboratório
Internet, Saúde e Sociedade (LaISS), do Centro de Saúde Escola Germano
Sinval de Faria da Ensp/Fiocruz, realizou um estudo para avaliar sites de saúde
vinculados às temáticas da dengue, tuberculose e aleitamento materno. Somente
em relação à dengue, foram avaliados 18 sites — entre portais de notícia, da
iniciativa privada e do governo — e nenhum deles conseguiu alcançar mais de 70%
de conformidade com os indicadores e critérios utilizados, divididos em
qualidade técnica, interatividade, legibilidade, abrangência e precisão da
informação.
Para André Pereira Neto,
historiador e pesquisador da Fiocruz que coordena o estudo, a avaliação da
qualidade da informação representa “um esforço no sentido de incentivar o
empoderamento do cidadão”. No Brasil, ainda não existe um sistema que
certifique a qualidade de sites sobre saúde. O Selo Sergio Arouca, lançado pela
Fiocruz em junho, pode ser um primeiro passo nesse sentido. Com o objetivo de
melhorar a qualidade da informação disponível nos sites de instituições
vinculadas ao SUS, serão avaliados 50 sites de secretarias municipais e
estaduais. O processo de avaliação tem início com um diagnóstico baseado em
critérios e indicadores. “Serão indicados os pontos que estão com menor
conformidade e que necessitam ser ajustados. Feitos os ajustes, o site é
reavaliado e receberá o selo” (ver Radis 167).
Autocuidado-X-Estresse
André acrescenta que o excesso
de informação em rede atrapalha, pois o cidadão tem dificuldade de discernir
entre o certo e o duvidoso, o correto e o mentiroso. Por outro lado, ele
acredita que o acesso à informação de qualidade pode aumentar a autonomia do
cidadão. Helena Garbin, que há quatro anos defendeu tese de doutorado sobre o
uso da internet para obtenção de informações em saúde, lembra que o acesso a
informações técnicas e científicas ou vinda de pares pode facilitar a percepção
de sinais de alerta para quadros agudos, agilizando a busca por atenção em
saúde. “Também o conhecimento ampliado sobre seu próprio estado de saúde pode ser
benéfico para um indivíduo, em especial para portadores de adoecimento crônico,
por permitir uma melhor compreensão de seu adoecimento e de seu corpo e uma
melhor observação das alterações no seu organismo”, diz, constatando que isso
possibilita que ele se torne mais ativo em seu tratamento e consciente do
autocuidado. Contudo, ela pondera, alguns estudos ainda apontam que a
informação obtida pode gerar estresse e sofrimento diante das reais
possibilidades de evolução de determinadas patologias e até colaborar para seu
agravamento. “Além do risco de informações erradas e incompletas, é sabido que
as pessoas tendem a acreditar em diagnósticos raros e graves encontrados na
rede (e não somente na rede) para suas queixas comuns”.
A despeito disso, a pesquisadora
diz que os grupos e comunidades virtuais de adoecidos podem desempenhar um
papel importante, proporcionando uma recuperação de sentidos, oferecendo
suporte e um retorno às questões humanas do adoecer. Além disso, permitem que
as informações da vivência diária do adoecimento sejam trocadas entre os
principais interessados. Ela lembra, entretanto, que algumas comunidades, assim
como muitos sites, podem ser simplesmente veículos de empresas comerciais,
interessadas em divulgação de medicamentos, de novas tecnologias, ou mesmo de
valores que levem os usuários a buscar seus produtos.
“Paciente-informado"-e-médico-que-orienta
Em pesquisa que realizou no
Facebook com pessoas vivendo com HIV, diabetes e hepatite C, André Pereira diz
ter constatado que a troca de conhecimentos derivados da lida diária com a
doença foi fundamental para a promoção de autonomia e o autocuidado. “A
informação disponível e compartilhada na Internet está levando à construção do
‘expert patient‘ ou ‘paciente informado’, um paciente que se torna especialista
em determinado assunto de saúde graças à quantidade de informação que possui”,
acrescenta. André acredita que é por esta razão que a tradicional relação
vertical entre médico e paciente vem sofrendo uma profunda alteração.
De acordo com Helena, as
informações disponíveis na internet têm potencial para modificar a relação
médico-paciente, ainda baseada em um significativo desequilíbrio de poder.
“Elas tendem a elevar o poder decisório do paciente, colocando em questão a
formação e autoridade profissional médica e desafiando o médico a estar
constantemente atualizado”. A pesquisadora acredita que, em um sistema de saúde
perfeito, seria fundamental o paciente colocar as coisas que encontrou em sua
pesquisa, os dois discutirem a questão e assim criarem a possibilidade de
decisões mais compartilhadas. “O médico poderia também orientar a busca de
informações de seu paciente e possibilitar aos indivíduos optar racionalmente
pela adoção de comportamentos considerados saudáveis”, diz. “Mas como é
possível realizar essas tarefas, além das atividades clássicas de uma consulta
médica, num mundo imperfeito de consultas de 10 ou 15 minutos e fila na
porta?”, indaga.
Helena reitera que uma boa
pesquisa na internet não substitui jamais os anos de formação em ciências
médicas. “Saber tudo sobre uma patologia não se compara ao estudo de anatomia,
anatomia patológica, semiologia, farmacologia”, afirma. Para Ana Valéria e
Júlio César, é impossível fechar os olhos para o fenômeno de busca incessante
por informações na internet. “Os profissionais de saúde devem lidar com essa
realidade com a sensatez de quem deve reconhecer que a educação permanente
passa pelo fato de inclusão tecnológica, uso de evidências para tomada de
decisão e ainda uso de informação com qualidade para orientação das demandas
dos serviços de saúde”, concluem, sugerindo que deveria se tornar obrigatório
aos projetos de inclusão digital e social mediados por tecnologias inclusivas a
orientação para os riscos da informação desassistida.
*Reportagem publicada na
edição 171 da revista, de dezembro de 2016
PARA SABER MAIS
O que é automedicação?
A automedicação é a utilização
de medicamentos por conta própria ou por indicação de pessoas não habilitadas,
para tratamento de doenças cujos sintomas são “percebidos” pelo usuário, sem a
avaliação prévia de um profissional de saúde.
O que é o uso indiscriminado
de medicamentos?
O uso indiscriminado de
medicamentos não se restringe somente à automedicação. Está relacionado à
“medicalização”, ou seja, uma forma de encontrar a cura para as doenças e
promover o bem-estar usando exclusivamente o medicamento.
Quais os riscos causados pela
automedicação e pelo uso indiscriminado de medicamentos?
Uma das preocupações frente à
automedicação e ao uso indiscriminado de medicamentos é o risco de intoxicação.
Os analgésicos, os antitérmicos e os antiinflamatórios representam as classes
de medicamentos que mais intoxicam.
Por Ana Cláudia Perez/ Revista
Radis
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