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terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Web provoca mudanças na relação médico-paciente

— Diga trinta e três. 
— Trinta e três... trinta e três... trinta e três... 
— Respire. 
— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado. 
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? 
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Antes da Internet e ainda bem antes, quando a tuberculose era conhecida como “a peste cinzenta” ou “doença do peito”, Manuel Bandeira fez poesia diante de uma consulta médica de diagnóstico irreversível. Digite “Pneumotórax” hoje em sua ferramenta de busca. Você vai encontrar 133 mil ocorrências para o termo em segundos. Os versos do poeta brasileiro até aparecerão ali pela oitava página mas antes você terá uma infinidade de informações sobre essa urgência médica: o que é, quais os sintomas, como tratar, onde ir, sites úteis, links para consultórios, páginas tira-dúvidas, dicas de comunidades virtuais. O volume de referências disponíveis e o hábito cada vez mais comum entre os usuários que acessam a web para se informar sobre doenças gera excessos que preocupam especialistas ao mesmo tempo em que modificam a relação médico-paciente, com mais autonomia para o cidadão.

De acordo com os dados da última TIC Domicílios — pesquisa realizada anualmente com o objetivo de mapear formas de uso das tecnologias de informação e comunicação no país —, aproximadamente 46% dos usuários de internet no Brasil utilizam a rede à procura de informações médicas sobre saúde em geral e serviços de saúde, numa incidência maior entre mulheres e população economicamente ativa. Já o buscador Google divulgou recentemente que 1% das buscas realizadas no site em todo o mundo é sobre sintomas de doenças, fazendo com que a alcunha de “Doutor Google”, utilizada de forma jocosa pelos usuários para se referir ao gigante de buscas online, seja bastante apropriada.

Para a médica e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), Helena Garbin, os indivíduos sempre procuraram informações sobre seu estado de saúde, mas é inegável que o surgimento da Internet trouxe um aumento significativo do acesso a informações amplificando assim os reflexos deste processo e alterando a relação entre os indivíduos. Como lidar com tantas informações diferentes e frequentemente contraditórias sempre ao alcance de um clique? Em que informação confiar? Como encarar o fenômeno que gerou até um termo próprio, os chamados “cibercondríacos”? 

Segundo Helena, cibercondríacos são nada mais nada menos que hipocondríacos com acesso à internet. “Isto é, a internet e seus incontáveis locais com diferentes formas de obtenção de informação em saúde são os instrumentos que facilitam a hipocondria”, diz a pesquisadora, acrescentando que a preocupação maior que se coloca é em relação à qualidade da informação disponível. Para ela, além de verificar a credibilidade do conteúdo e das fontes, é importante manter-se alerta para a origem e reconhecimento do ambiente no qual a página está hospedada. Quando se fala de informação técnica, uma boa indicação, de acordo ainda com a pesquisadora, são sites suportados por universidades, hospitais, instituições da área da saúde e escolas de formação em outras racionalidades médicas que não a biomedicina a exemplo da homeopatia, acupuntura e ayurvédica. 

“Mas se nos referirmos à informação dita ‘leiga’, a escolha de parâmetros é bem mais complicada”, adverte. A pesquisadora chama a atenção para o perigo do autodiagnóstico e da automedicação, que podem gerar consequências nefastas tanto para os indivíduos quanto para a saúde pública, uma vez que boa parte dos estudos mostra que não são adotados critérios durante as buscas. “Uma coisa é, por exemplo, usar uma medicação sintomática clássica para um aparente resfriado comum e procurar atendimento se não houver melhora”, diz, sem esquecer que mesmo isso apresenta riscos. “Outra coisa é juntar sintomas, fazer um diagnóstico na internet e se tratar por conta própria, ou parar medicação prescrita porque alguém do grupo de Facebook parou”.

Avaliando-a-qualidade-da-informação

Quem nunca digitou “dengue” ou “enxaqueca”, descreveu os sintomas de um mal estar ou acessou pelo nome um medicamento qualquer nos sites de busca? A prática tem se tornado tão frequente quanto realizar, pela web, uma consulta prévia ou posterior a uma ida ao médico, fazer comparação entre diagnósticos e buscar uma segunda opinião ainda que no universo virtual. Para os professores em saúde pública da Universidade de Brasília (UnB), Ana Valéria Machado Mendonça e Júlio César Cabral, isso abre espaços para erros sucessivos. “A possibilidade de semelhança entre diagnósticos pode conduzir a decisões erradas e, consequentemente, a um agravamento na saúde do indivíduo”, argumentam. Segundo os pesquisadores, a leitura e apropriação das informações, se não bem orientadas, levam a interpretações pragmáticas, algo que não cabe em se tratando de saúde. “Além disso, a adoção de procedimentos, medicamentos e doses erradas no tratamento pode agravar a doença e favorecer o aparecimento de outros problemas, por exemplo, intoxicação ou resistência à medicação”.  

Atento à qualidade da informação disponível na web, o Laboratório Internet, Saúde e Sociedade (LaISS), do Centro de Saúde Escola Germano Sinval de Faria da Ensp/Fiocruz, realizou um estudo para avaliar sites de saúde vinculados às temáticas da dengue, tuberculose e aleitamento materno. Somente em relação à dengue, foram avaliados 18 sites — entre portais de notícia, da iniciativa privada e do governo — e nenhum deles conseguiu alcançar mais de 70% de conformidade com os indicadores e critérios utilizados, divididos em qualidade técnica, interatividade, legibilidade, abrangência e precisão da informação. 

Para André Pereira Neto, historiador e pesquisador da Fiocruz que coordena o estudo, a avaliação da qualidade da informação representa “um esforço no sentido de incentivar o empoderamento do cidadão”. No Brasil, ainda não existe um sistema que certifique a qualidade de sites sobre saúde. O Selo Sergio Arouca, lançado pela Fiocruz em junho, pode ser um primeiro passo nesse sentido. Com o objetivo de melhorar a qualidade da informação disponível nos sites de instituições vinculadas ao SUS, serão avaliados 50 sites de secretarias municipais e estaduais. O processo de avaliação tem início com um diagnóstico baseado em critérios e indicadores. “Serão indicados os pontos que estão com menor conformidade e que necessitam ser ajustados. Feitos os ajustes, o site é reavaliado e receberá o selo” (ver Radis 167). 

Autocuidado-X-Estresse
André acrescenta que o excesso de informação em rede atrapalha, pois o cidadão tem dificuldade de discernir entre o certo e o duvidoso, o correto e o mentiroso. Por outro lado, ele acredita que o acesso à informação de qualidade pode aumentar a autonomia do cidadão. Helena Garbin, que há quatro anos defendeu tese de doutorado sobre o uso da internet para obtenção de informações em saúde, lembra que o acesso a informações técnicas e científicas ou vinda de pares pode facilitar a percepção de sinais de alerta para quadros agudos, agilizando a busca por atenção em saúde. “Também o conhecimento ampliado sobre seu próprio estado de saúde pode ser benéfico para um indivíduo, em especial para portadores de adoecimento crônico, por permitir uma melhor compreensão de seu adoecimento e de seu corpo e uma melhor observação das alterações no seu organismo”, diz, constatando que isso possibilita que ele se torne mais ativo em seu tratamento e consciente do autocuidado. Contudo, ela pondera, alguns estudos ainda apontam que a informação obtida pode gerar estresse e sofrimento diante das reais possibilidades de evolução de determinadas patologias e até colaborar para seu agravamento. “Além do risco de informações erradas e incompletas, é sabido que as pessoas tendem a acreditar em diagnósticos raros e graves encontrados na rede (e não somente na rede) para suas queixas comuns”. 

A despeito disso, a pesquisadora diz que os grupos e comunidades virtuais de adoecidos podem desempenhar um papel importante, proporcionando uma recuperação de sentidos, oferecendo suporte e um retorno às questões humanas do adoecer. Além disso, permitem que as informações da vivência diária do adoecimento sejam trocadas entre os principais interessados. Ela lembra, entretanto, que algumas comunidades, assim como muitos sites, podem ser simplesmente veículos de empresas comerciais, interessadas em divulgação de medicamentos, de novas tecnologias, ou mesmo de valores que levem os usuários a buscar seus produtos.

“Paciente-informado"-e-médico-que-orienta

Em pesquisa que realizou no Facebook com pessoas vivendo com HIV, diabetes e hepatite C, André Pereira diz ter constatado que a troca de conhecimentos derivados da lida diária com a doença foi fundamental para a promoção de autonomia e o autocuidado. “A informação disponível e compartilhada na Internet está levando à construção do ‘expert patient‘ ou ‘paciente informado’, um paciente que se torna especialista em determinado assunto de saúde graças à quantidade de informação que possui”, acrescenta. André acredita que é por esta razão que a tradicional relação vertical entre médico e paciente vem sofrendo uma profunda alteração. 

De acordo com Helena, as informações disponíveis na internet têm potencial para modificar a relação médico-paciente, ainda baseada em um significativo desequilíbrio de poder. “Elas tendem a elevar o poder decisório do paciente, colocando em questão a formação e autoridade profissional médica e desafiando o médico a estar constantemente atualizado”. A pesquisadora acredita que, em um sistema de saúde perfeito, seria fundamental o paciente colocar as coisas que encontrou em sua pesquisa, os dois discutirem a questão e assim criarem a possibilidade de decisões mais compartilhadas. “O médico poderia também orientar a busca de informações de seu paciente e possibilitar aos indivíduos optar racionalmente pela adoção de comportamentos considerados saudáveis”, diz. “Mas como é possível realizar essas tarefas, além das atividades clássicas de uma consulta médica, num mundo imperfeito de consultas de 10 ou 15 minutos e fila na porta?”, indaga.

Helena reitera que uma boa pesquisa na internet não substitui jamais os anos de formação em ciências médicas. “Saber tudo sobre uma patologia não se compara ao estudo de anatomia, anatomia patológica, semiologia, farmacologia”, afirma. Para Ana Valéria e Júlio César, é impossível fechar os olhos para o fenômeno de busca incessante por informações na internet. “Os profissionais de saúde devem lidar com essa realidade com a sensatez de quem deve reconhecer que a educação permanente passa pelo fato de inclusão tecnológica, uso de evidências para tomada de decisão e ainda uso de informação com qualidade para orientação das demandas dos serviços de saúde”, concluem, sugerindo que deveria se tornar obrigatório aos projetos de inclusão digital e social mediados por tecnologias inclusivas a orientação para os riscos da informação desassistida.

*Reportagem publicada na edição 171 da revista, de dezembro de 2016

PARA SABER MAIS

O que é automedicação?
A automedicação é a utilização de medicamentos por conta própria ou por indicação de pessoas não habilitadas, para tratamento de doenças cujos sintomas são “percebidos” pelo usuário, sem a avaliação prévia de um profissional de saúde.

O que é o uso indiscriminado de medicamentos?
O uso indiscriminado de medicamentos não se restringe somente à automedicação. Está relacionado à “medicalização”, ou seja, uma forma de encontrar a cura para as doenças e promover o bem-estar usando exclusivamente o medicamento.

Quais os riscos causados pela automedicação e pelo uso indiscriminado de medicamentos?
Uma das preocupações frente à automedicação e ao uso indiscriminado de medicamentos é o risco de intoxicação. Os analgésicos, os antitérmicos e os antiinflamatórios representam as classes de medicamentos que mais intoxicam.


Por Ana Cláudia Perez/ Revista Radis


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