Em
artigo publicado recentemente na revista Nature
Communications, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) descreveram
o papel central de uma enzima – a fosfatidilinositol 3-quinase (PI3K) gama – na
regulação da resposta imune contra o Trypanosoma cruzi, protozoário
causador da doença de Chagas.
O
estudo foi conduzido no Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias (CRID), um
dos CEPIDs apoiados pela FAPESP, durante o mestrado e o doutorado de
Maria Claudia da Silva. A orientação foi feita pelos professores da Faculdade
de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP) João Santana da Silva e Thiago Mattar
Cunha.
“Nossos
resultados indicam que durante a infecção pelo T. cruzi, tanto em
camundongos como em humanos, ocorre um aumento na expressão de PI3K gama. Isso
parece ser essencial tanto para evitar uma inflamação exacerbada e lesiva ao
organismo como para controlar o parasitismo no coração”, contou Maria Claudia
em entrevista à Agência FAPESP.
Na
avaliação dos autores, moléculas capazes de modular a via de sinalização
celular mediada por essa enzima poderão ser, no futuro, testadas no tratamento
da enfermidade que atinge cerca de 7 milhões de pessoas na América Latina –
entre 2 e 3 milhões somente no Brasil.
Geralmente
transmitida pela picada do inseto conhecido como barbeiro (Triatoma
infestans), pela transfusão de sangue de pacientes chagásicos ou pela
ingestão de alimentos contaminados, a infecção pelo T. cruzi acompanha
o paciente até o fim da vida. Apresenta uma primeira fase aguda, que pode ser
assintomática ou causar febre, mal-estar, inflamação e dor nos gânglios,
vermelhidão, inchaço nos olhos, aumento do fígado e do baço.
Anos
depois podem surgir as complicações da fase crônica, sendo a mais comum o
alargamento dos ventrículos do coração (condição que afeta cerca de 30% dos
pacientes e costuma levar à insuficiência cardíaca) e a dilatação do esôfago ou
o alargamento do cólon (que acomete até 10% dos infectados e pode levar à perda
dos movimentos peristálticos e à dificuldade de funcionamento dos esfíncteres).
A maioria permanece assintomática mesmo com uma reserva de parasitas no
organismo.
“Em
nosso modelo de estudo usamos uma linhagem do protozoário que tem preferência
pelo tecido do coração. Logo nos primeiros experimentos, observamos que
camundongos deficientes de PI3K gama desenvolviam já na fase aguda uma
cardiopatia grave e morriam em pouco tempo. Mas não tínhamos a menor ideia de
por que isso acontecia”, disse Santana da Silva.
Ao
aprofundar as análises, a equipe do CRID percebeu que os camundongos
geneticamente modificados para não expressar PI3K gama apresentavam a mesma
quantidade de parasitas no sangue que os animais selvagens, ou seja, capazes de
expressar a enzima e de sobreviver à infecção.
Segundo
Santana da Silva, o esperado seria que os camundongos mortos em decorrência da
infecção pelo T. cruzi apresentassem uma maior carga de
parasitas no sangue do que aqueles que sobreviveram.
“Quando
olhamos o coração, porém, percebemos que os camundongos deficientes de PI3K
gama tinham uma carga parasitária muito maior no órgão e também uma inflamação
[miocardite] muito mais severa. O sistema imune estava produzindo moléculas
pró-inflamatórias de forma descontrolada, lesionando o tecido cardíaco, e mesmo
assim não conseguia matar o parasita de forma eficiente”, contou Santana da
Silva.
Defeito nos macrófagos
Durante
o doutorado de Maria Claudia, o grupo se dedicou a investigar de que forma a
resposta imune ao protozoário é modificada pela ausência de PI3K gama. De
acordo com Cunha, já existiam estudos mostrando que a enzima participa de uma
via de sinalização importante para a migração das células de defesa para locais
do organismo em que há inflamação.
No
caso da infecção pelo T. cruzi, em uma condição normal, certas
substâncias chamadas quimiocinas são produzidas pelo parasita quando ele
infecta as células do hospedeiro. Essas moléculas ativam macrófagos e células
dendríticas – a linha de frente do sistema imune –, que migram para o local e
matam o invasor.
Embora
o mecanismo de defesa não seja 100% eficiente, explicam os pesquisadores,
consegue manter baixa a carga parasitária, tanto que a maioria dos indivíduos
não apresenta sintomas na fase aguda.
“Nossos
resultados mostraram que, quando a via de sinalização mediada por PI3K gama não
está ativa nos macrófagos, essas células perdem a capacidade de matar o
parasita e de controlar a inflamação. Para provar que o problema estava
especificamente nos macrófagos, usamos um modelo animal chamado nocaute
condicional, que só não tem a PI3K gama nessas células de defesa”, explicou
Cunha.
Embora
o mecanismo ainda não tenha sido completamente elucidado, o grupo da USP
conseguiu verificar que a falta da enzima faz com que o macrófago produza menor
quantidade de óxido nítrico – molécula essencial para matar o protozoário e que
atua em conjunto com uma citocina inflamatória chamada interferon gamma (IFNγ).
“Se
o macrófago não expressa PI3K gama, mesmo na presença de IFNγ ele não consegue
matar o protozoário”, disse Santana da Silva.
Evidências em humanos
Em
parceria com o pesquisador Edecio Cunha Neto, da Faculdade de Medicina da USP
em São Paulo (FMUSP), o grupo do CRID estudou tecidos de pacientes que
desenvolveram cardiopatia na fase crônica da doença de Chagas e foram
submetidos à biópsia ou a transplante de coração. Avaliaram ainda um banco de
dados com informações de todas as moléculas expressas no tecido cardíaco.
As
análises revelaram que os indivíduos com maior expressão de PI3K gama tinham
uma menor quantidade de parasitas no coração que os que expressavam menor
quantidade da enzima – embora ambos apresentassem miocardite. Além disso, todos
eles tinham níveis mais elevados de PI3K gama e de todas as moléculas da via mediada
por essa enzima quando comparados a pacientes cardíacos não chagásicos
(portadores de uma condição conhecida como insuficiência congestiva crônica).
“Esses
resultados sugerem que também em humanos essa enzima está envolvida no controle
do parasita. Em experimentos in vitro, vimos que, ao infectar
macrófagos humanos com o T. cruzi após tratamento com inibidor
da PI3K, tais células falham em matar o patógeno intracelular. Como isso ocorre
é algo que ainda precisamos entender”, disse Santana da Silva.
Dados
preliminares do grupo também indicam que em pacientes que desenvolvem
cardiopatia na fase crônica da infecção pelo T. cruzi é maior
a incidência de um polimorfismo (variação no gene codificador da enzima) que
talvez seja associado a uma menor atividade da enzima PI3K gama – em comparação
a pacientes que desenvolvem doença crônica em outros órgãos, como baço ou
intestino.
“Estamos
agora escrevendo um segundo trabalho levantando a hipótese de que pessoas com
um determinado polimorfismo no gene codificador da PI3K gama têm mais risco de
desenvolver cardiopatia na fase crônica”, explicou Cunha.
Outra
possível linha de investigação, segundo o pesquisador, é avaliar se os raros
casos de pacientes que morrem de miocardite fulminante ainda na fase aguda da
infecção estariam associados à menor expressão de PI3K gama, como foi observado
em camundongos.
Santana
da Silva também tem interesse em investigar as vias de sinalização que modulam
a produção de PI3K gama no organismo humano.
“Hoje
já temos drogas capazes de inibir a produção da enzima, mas não de estimulá-la.
Agora temos de investigar as vias regulatórias mediadas pela PI3K gama em busca
de moléculas capazes de induzir a liberação das mesmas substâncias. Já testamos
no laboratório algumas moléculas que funcionam da mesma maneira. É um estudo de
ciência básica, mas com possível aplicação direta no controle do parasitismo
tanto na fase aguda quanto crônica”, disse o pesquisador.
Na
avaliação de Cunha, ativar a enzima “não é tarefa simples” e pode ter
implicações em outras condições de saúde. “Inibidores da via da PI3K gama já
estão sendo testados no tratamento do câncer e de doenças inflamatórias”, contou.
O
artigo Canonical PI3Kγ signaling in myeloid cells restricts Trypanosoma
cruzi infection and dampens chagasic myocarditis, de Maria C. Silva,
Marcela Davoli-Ferreira, Tiago S. Medina, Renata Sesti-Costa, Grace K. Silva,
Carla D. Lopes, Lucas E. Cardozo, Fábio N. Gava, Konstantina Lyroni, Fabrício
C. Dias, Amanda F. Frade, Monique Baron, Helder I. Nakaya, Florêncio
Figueiredo, José C. Alves-Filho, Fernando Q. Cunha, Christos Tsatsanis,
Christophe Chevillard, Edecio Cunha-Neto, Emilio Hirsch, João S. Silva e Thiago
M. Cunha, pode ser lido em: www.nature.com/articles/s41467-018-03986-3.
Fapesp
0 comentários:
Postar um comentário