José Tadeu Arantes | AgênciaFAPESP – As mutações do SARS-CoV-2 são um dos temas mais quentes do momento. As
novas variantes do vírus estão fazendo com que a pandemia de COVID-19
recrudesça em lugares onde parecia controlada. E podem prolongar a fase crítica
atual muito além do tempo esperado.
Um estudo, realizado no
Instituto de Física Gleb Wataghin, da Universidade Estadual de Campinas
(IFGW-Unicamp), modelou as mutações sofridas pelo SARS-CoV-2 durante seu
processo de replicação e, por decorrência, a evolução genética do vírus ao
longo da pandemia. Os dados foram publicados na revista PLOS ONE.
No artigo, os autores
enfatizam o alerta já feito por outros cientistas: as populações que não estão
sendo vacinadas e os grupos sociais que se recusam a receber a vacina favorecem
o aparecimento de variantes. E, se esse problema não for resolvido
urgentemente, a pandemia pode ter um novo pico em escala global.
“Como se sabe, os vírus são
organismos muito simples, incapazes de se reproduzir por si mesmos. Para
poderem replicar o seu RNA, precisam utilizar as células do hospedeiro. E, ao
danificá-las, causam a doença. Ocorre que, durante o processo de replicação,
erros de cópia são inevitáveis. Os organismos mais complexos possuem mecanismos
para correção de erros. Mas os vírus não possuem. Caso algum desses erros
proporcione uma vantagem ao vírus em termos de propagação, essa mutação passará
a ter importância. E, eventualmente, poderá até predominar. Se a propagação
ocorre sem freios, devido à não vacinação, as mutações tendem a acontecer cada
vez mais e a se espalhar pelo globo”, diz o físico Marcus de Aguiar, professor
do IFGW-Unicamp e coordenador do estudo.
Ao contrário do que dizem os
negacionistas, não é a vacinação que favorece a mutação. Mas a falta dela,
explica o pesquisador.
“Quando se vacina grande parte
da população, o vírus para de circular. E, circulando menos, diminui a taxa de
reprodução viral. E, portanto, a chance de aparecerem novas variantes.”
Os modelos tradicionais de
epidemiologia enfocam os números de pessoas infectadas, suscetíveis e
recuperadas ao longo do tempo. No estudo em pauta, o modelo incluiu a descrição
do RNA do vírus. “Saber quão diferentes são os microrganismos em circulação em
relação aos vírus originais é importante para entender o aparecimento de novas
variantes. Também para estimar se, mesmo que já tenha sido infectada pelo vírus
original, uma pessoa poderá vir a ser reinfectada pela variante. E, ainda, para
prever se o novo patógeno poderá escapar ou não da ação de vacinas projetadas
para o original”, explica Aguiar.
Como acontece com todo modelo
científico, o modelo desenvolvido no estudo é uma aproximação idealmente
simplificada daquilo que de fato acontece na realidade. A base a partir da qual
ele foi construído é o modelo do tipo SEIR, já consagrado em epidemiologia. A
sigla SEIR é formada pelas letras iniciais de quatro palavras em língua
inglesa: “Susceptible” (Suscetível), “Exposed” (Exposto), “Infectious”
(Infectante) e “Recovered” (Recuperado). “Suscetível” é a pessoa que pode ser
infectada; “exposta”, a infectada, mas não infectante; “infectante”, a
infectada e infectante; “recuperada”, aquela que já se recuperou da doença e,
idealmente, não poderia ser mais infectada.
“Para evitar uma complexidade
excessiva, que tornaria o modelo matematicamente inviável, consideramos que
indivíduos classificados como ‘recuperados’ não podem ser infectados por
nenhuma variante que possa surgir. Também consideramos as mutações como
neutras, ou seja, que não conferem ao vírus mutado nenhuma vantagem ou
desvantagem adicional em relação ao vírus que lhe deu origem. Não é isso que
acontece de fato na realidade. Mas adotamos essas simplificações para poder
concentrar o foco em nosso objetivo, que era estudar o acúmulo das mutações virais
durante a pandemia e o quão diferentes os vírus podem ficar”, esclarece o
pesquisador.
Para atingir esse objetivo, o
modelo foi acrescido de uma descrição dos vírus, a partir de seu RNA, com
29.900 bases nitrogenadas, e uma taxa de mutação 0,001 por base por ano – dados
esses obtidos a partir da estrutura e do comportamento do SARS-CoV-2.
“Enquanto um indivíduo
permanece infectado, o vírus pode sofrer mutações e ser transmitido. Calculamos
a ‘distância’ entre o vírus original e a variante a partir do número de bases
nitrogenadas distintas que eles apresentam. Nossas equações sugerem que é
possível prever, com dados epidemiológicos [número de suscetíveis, infectados e
recuperados], a variabilidade da população viral [‘distância média’ entre as
sequências de RNA], sem que seja necessário ter acesso a uma enorme quantidade
de dados genéticos”, diz Aguiar.
Com o intuito de testar o
modelo, os pesquisadores utilizaram as equações para mostrar, a partir dos
dados da epidemia na China, no início de 2020, como seria a evolução da
“distância genética média” entre os vírus que teriam hipoteticamente surgido
durante aquele período. Comparando o resultado com as distâncias calculadas a
partir de dados genéticos obtidos localmente no mesmo período, a previsão
apresentou boa concordância com os dados reais.
“A propagação do vírus através
de comunidades distintas [cidades, países etc.] pode levar a sequências
bastante diferentes da original, aumentando as chances de reinfecção,
dependendo fortemente da conectividade entre essas comunidades. Quanto menos
conectadas duas comunidades, maior a diferença no vírus que uma pode transmitir
para a outra. Isso aumenta a chance de que o vírus circulante em uma das
comunidades seja capaz de escapar do controle do sistema imune dos indivíduos
da outra comunidade”, resume o pesquisador.
E acrescenta: “É importante
ressaltar que, para que ocorra a mutação efetiva do vírus, conferindo-lhe
vantagens ou desvantagens, é necessário que os defeitos de replicação ocorram
em locais específicos do RNA viral. Assim, distâncias genéticas altas aumentam
a chance de que existam mutações importantes, mas não as garantem. E nossas
considerações são baseadas nessa perspectiva”.
O estudo recebeu apoio da
FAPESP por meio de um Projeto Temático; de um Auxílio à Pesquisa Regular
concedido a Aguiar; e da Bolsa de Doutorado de Vitor Marquioni Monteiro, orientando
de Aguiar e autor principal do artigo.
O artigo Modeling neutral viral mutations in the spread of SARS-CoV-2 epidemics pode ser acessado em https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0255438.
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