Luciana Constantino | AgênciaFAPESP – Pesquisa brasileira publicada na revista Brain, Behavior, and Immunity
desvenda um dos mecanismos pelos quais o vírus zika causa complicações
neurológicas em pacientes adultos e microcefalia em fetos. A descoberta abre a
possibilidade para que novos estudos busquem medicamentos capazes de inibir o
agravamento da doença.
No trabalho, que teve o apoio
da FAPESP, os cientistas demonstraram uma correlação entre as complicações
neurológicas do zika com níveis elevados de Gas6, uma proteína que ajuda o
vírus a entrar nas células. Mostraram ainda que as principais fontes de Gas6
nesses casos são os monócitos periféricos, um grupo de células do sistema
imunológico.
Em sua forma ativa, a Gas6 se
liga a receptores da família TAM (Axl, Tyro3 e Mer) e, após a entrada nas
células, é capaz de reprimir uma resposta inflamatória do organismo,
facilitando a replicação viral e levando ao agravamento da infecção por zika.
“O próprio vírus induz a
expressão de Gas6, que aparece em nível maior nos pacientes com a forma grave
da doença. Esses níveis estão ligados ao aumento de supressores de sinalização
de citocinas [SOCS-1], responsáveis pelo bloqueio das respostas antivirais de
interferon tipo 1. Quanto mais potente esse mecanismo, pior o prognóstico do
paciente”, explica o professor José Luiz Proença Modena, do Instituto de
Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp) e um dos
orientadores do trabalho.
O estudo teve a participação
de três grupos: o coordenado por Modena, que analisou amostras de soro de
pacientes com zika, incluindo grávidas; o do professor Fábio Trindade Maranhão
Costa, também do IB-Unicamp; e o de Jean Pierre Schatzmann Peron, do
Departamento de Imunologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade
de São Paulo (ICB-USP) e da Plataforma Científica Pasteur-USP (SPPU, na sigla
em inglês), um instituto da Rede Pasteur constituído em parceria com a universidade,
que fez testes em camundongos.
Parte dos pesquisadores
integra a Rede Zika Unicamp, criada em 2016, após a epidemia no Brasil, para
desenvolver pesquisas que contribuam com o enfrentamento dos graves impactos
causados na saúde pública pelas doenças transmitidas pelo mosquito Aedes
aegypti. Também teve a cooperação científica do Laboratório de Doenças
Infecciosas A*Star, de Cingapura. Essa parceria já resultou em outros estudos
publicados, como o que identificou um marcador para zika.
“A Rede Zika funcionou como um
embrião desse tipo de parceria, que continua surgindo e se expandindo. Agregou
pessoas competentes e com linhas complementares, unindo expertise, com
resultados positivos. A atividade colaborativa contribui com a qualidade do
trabalho”, afirma Costa.
Em 2015, o vírus zika se
tornou um problema de saúde pública, começando na América do Sul e depois
se espalhando para mais de 94 países. Descoberto pela primeira vez em 1947 em
Uganda (África), não foi considerado uma ameaça à saúde humana até os surtos
registrados nos anos 2000.
No Brasil, houve a notificação
de aproximadamente 214 mil casos prováveis de zika em 2016. No ano seguinte,
foram 17 mil registros, caindo para 8 mil, em 2018. De janeiro a maio deste
ano, segundo o Ministério da Saúde, são 2.006 casos prováveis.
O aumento de registros de zika
veio acompanhado do crescimento de microcefalia, um raro distúrbio
neurológico no qual o cérebro do bebê não se desenvolve completamente. Somente
em 2015 foram mais de 2.400 registros de microcefalia no país. Antes, entre
2010 e 2014, haviam sido notificados 781 casos em todo o período.
A epidemia de zika no Brasil
ocorreu em regiões historicamente endêmicas para a dengue. Os dois vírus (ambos
do gênero Flavivirus) têm o mesmo vetor de transmissão, o Aedes Aegypti, e os
sintomas das doenças também são semelhantes (febre, dor de cabeça, vermelhidão
nos olhos, dores nas articulações e manchas no corpo).
Apesar de a infecção por zika
ser geralmente assintomática, dados recentes mostram a ligação entre a doença e
o desenvolvimento de síndromes neurológicas, como a de Guillain-Barré,
encefalite e meningite em adultos e malformações congênitas, como a microcefalia,
em recém-nascidos. Ficou demonstrado que o vírus pode atravessar as barreiras
cerebrais e placentárias, atingindo nesse caso os tecidos fetais.
Modena lembra que, para a
dengue, já havia sido mostrado na literatura que o vírus pode interagir com Gas6
e usar esse mecanismo para entrar em fagócitos e se replicar. E agora a
pesquisa desvendou o funcionamento em casos de zika.
Entendendo o caminho
Para correlacionar os níveis
de Gas6 com as complicações neurológicas associadas ao zika, os pesquisadores
analisaram o soro de pacientes (por meio de um teste imunoenzimático),
incluídos em um estudo transversal realizado entre fevereiro de 2016 e junho de
2017 em diferentes hospitais da cidade de Campinas.
Foram avaliadas amostras de 57
pacientes com doença leve (chamados de não neuro), de 19 com complicações
neurológicas após infecção por zika (neuro), de 14 com complicações
neurológicas, mas sem ligação com a doença, e de 13 saudáveis. Os neuro
apresentaram maiores níveis de Gas6, com aumento de supressores de sinalização
de citocinas (SOCS-1).
Paralelamente a esses testes
das amostras dos pacientes, o grupo orientado por Peron trabalhou com
camundongos adultos imunocompetentes, ou seja, com sistema imune capaz de
combater o vírus (linhagens C57BL/ 6 e SJL).
“Inoculamos o vírus já
recoberto com Gas6 em animais prenhes e em animais adultos não prenhes. Nos
adultos, a carga viral no primeiro dia após a infecção era muito maior em
comparação aos animais que receberam o vírus sozinho, sem Gas6. O que mostra que
a proteína ajuda na infecção. Já entre os filhotes houve um elevado número com
malformação congênita, tinham cabeça e tamanho geral menores”, conta Lilian
Gomes de Oliveira, primeira autora do artigo juntamente com João Luiz da Silva
Filho.
Para conseguir se ligar aos
receptores celulares, Gas6 precisa sofrer carboxilação, uma reação química que
permite a interação com outras moléculas. Os pesquisadores então testaram in
vitro o uso da droga varfarina e perceberam que ela foi capaz de inibir ou
diminuir a replicação do vírus.
“Decifrando esse mecanismo
abrimos a possibilidade de novas análises que permitam a intervenção por
fármacos. Mostramos que o tratamento com varfarina em culturas de células é
efetivo para a inibição da multiplicação do vírus. Não avaliamos se vai
funcionar na clínica, mas é uma porta que se abre”, diz Modena.
À Agência FAPESP, Peron
destaca que os resultados contribuem não só para uma melhor compreensão sobre a
patogênese da infecção por zika e seus desfechos graves, como também abrem
caminhos que podem mirar o Gas6 como uma ferramenta terapêutica. Atualmente,
Peron coordena um projeto que estuda a imunopatogênese da COVID-19 em modelos
experimentais, também apoiado pela FAPESP.
No total, o artigo publicado
pelo grupo tem 46 autores e recebeu apoio da FAPESP por meio de
diversos projetos (16/00194-8; 17/26170-0, 16/12855-9, 16/21259-0,
18/13866-0, 17/02402-0, 16/07371-2, 17/11828-0, 17/26908-0, 17/22062-9,
18/13645-3, 20/02159-0, 17/22504-1 e 20/02448- 2).
O artigo Gas6 drives Zika virus-induced neurological complications in humans and congenital syndrome in immunocompetent mice pode ser lido em www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0889159121002981.
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