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terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Estudo aponta infecção persistente do zika na placenta

Maíra Menezes (IOC/Fiocruz)

Na maioria das vezes, quando uma gestante apresenta uma infecção viral, como um resfriado comum, o bebê permanece protegido dentro da barriga. Essa proteção se deve à ação da placenta, órgão que promove a ligação entre mãe e filho e atua como barreira contra microrganismos. No entanto, alguns patógenos conseguem ultrapassar essa defesa. É o caso do vírus zika, que, entre 2015 e 2016, causou uma emergência de saúde pública de importância internacional, pela associação com a microcefalia.

Meses após o contágio, agrupamento de partículas de tamanho compatível com o vírus Zika foi observado dentro de células da placenta de gestante infectada (Foto: Rabelo e col.)

Em busca de respostas sobre a doença, uma pesquisa liderada pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) voltou os olhos para este órgão chave. Publicado na revista científica internacional Frontiers in Immunology, o estudo analisou amostras da placenta de dez pacientes que contraíram o agravo durante a gravidez. Os pesquisadores observaram que o vírus causa infecção persistente no órgão, o que acarreta inflamação, disfunção vascular e danos severos ao tecido. Em casos de microcefalia, foi detectada ainda redução significativa de uma substância produzida na placenta, chamada de fator neurotrófico derivado do cérebro (conhecido pela sigla em inglês BDNF), que é essencial para o desenvolvimento do sistema nervoso fetal.

“Confirmamos a presença e replicação do zika em várias células da placenta e comprovamos um ambiente inflamatório robusto, que pode permanecer por meses, já que o vírus continua se replicando no órgão. A infecção leva a alterações patológicas no tecido, que podem, em alguns casos, dificultar a manutenção da gravidez e trazer prejuízos ao desenvolvimento fetal”, afirma o pesquisador do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisas Médicas do IOC e coordenador do estudo, Marciano Viana Paes. “A infecção persistente também aumenta as chances de o vírus chegar ao feto e pode regular fatores neurotróficos produzidos na placenta, que se relacionam com danos ao desenvolvimento do cérebro fetal”, completa a primeira autora do artigo, Kíssila Rabelo, que desenvolveu a pesquisa durante o curso de doutorado em Fisiopatologia Clínica e Experimental da Uerj, sob orientação do professor da Universidade, Jorge José de Carvalho, e co-orientação de Paes.

Diversos grupos de pesquisa e unidades de assistência materno-infantil do Rio de Janeiro colaboraram para a realização do trabalho. O estudo foi coordenado pelo Laboratório Interdisciplinar de Pesquisas Médicas do IOC e pelo Laboratório de Ultraestrutura e Biologia Tecidual da Uerj. Participaram também: Laboratório de Imunologia Viral do IOC, Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS/Fiocruz), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Faculdade de Medicina de Campos e Centro de Referência de Doenças Imuno-infecciosas (CRDI), além das unidades do grupo IMNE, em Campos dos Goytacazes, Hospital Geral Dr. Beda, Ceplin e UTI Neonatal Nicola Albano. O projeto contou com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj).

Infecção e inflamação

A pesquisa analisou amostras referentes a dez casos de zika em gestantes, registrados em 2015 e 2016, no auge da epidemia da doença. Cinco pacientes deram à luz bebês com microcefalia e cinco tiveram crianças com tamanho da cabeça normal. As amostras das placentas foram coletadas após o parto e comparadas ainda com as de cinco grávidas que não sofreram infecção, consideradas como controle.

O estudo apresenta ampla evidência de que o zika permanece na placenta, replicando-se no órgão, meses após o contágio. Sinais da presença do vírus foram encontrados em todas as amostras, incluindo casos em que as pacientes haviam apresentado sintomas da doença, como febre e manchas no corpo, no primeiro trimestre da gestação. Além disso, agrupamentos de partículas virais foram observados dentro das células placentárias e, de forma inédita, os pesquisadores conseguiram identificar danos em organelas celulares.

Detalhes do processo inflamatório desencadeado pelo zika na placenta são apontados na pesquisa. O estudo revela aumento de substâncias inflamatórias, que ativam a resposta imune, e de células de defesa, que atuam para combater a infecção. No entanto, a reação imunológica não é capaz de eliminar o zika, e o excesso de inflamação gera um ambiente tóxico para as células placentárias.

“Observamos que algumas pacientes apresentam infecção persistente na placenta e, ainda assim, não desenvolvem anticorpos neutralizantes para o zika. A resposta imune contra a infecção inclui várias células do sistema imunológico, como macrófagos e linfócitos T CD8 +, e tem perfil mais citotóxico, com o envolvimento de citocinas [moléculas que atuam na sinalização entre células] que levam ao dano tecidual e ao aumento da permeabilidade vascular”, descreve Kíssila.

As proteínas e o material genético do zika foram encontrados em seis diferentes tipos celulares, assim como nas células de defesa da placenta. Os achados reforçam pesquisas anteriores, apontando duas possíveis vias de infecção dos bebês. De um lado, a transmissão progressiva do vírus entre as células da placenta até alcançar o líquido amniótico e, posteriormente, o feto. De outro, o transporte de partículas virais por células imunológicas, que passam da mãe para filho.

Fator neurotrófico

Comparando as amostras, os pesquisadores verificaram que a substância BDNF apresentava redução estatisticamente significativa nos casos de microcefalia. Produzida na placenta, a molécula promove o crescimento e a diferenciação neuronal durante o desenvolvimento fetal, sendo fundamental para a formação do cérebro. Segundo os cientistas, embora não atue sozinha, esta pode ser uma das proteínas determinantes para a gravidade das lesões, e o nível de BDNF na placenta pode servir como marcador preditivo da extensão dos danos.

“O BDNF é um fator neurotrófico, produzido normalmente na placenta para a manutenção de células placentárias, mas que também é essencial para o desenvolvimento do sistema nervoso fetal. Por isso, investigamos sua presença nas diferentes amostras. Observamos que havia uma expressão reduzida nos tecidos infectados e quase nula nas placentas que geraram bebês com microcefalia. Isso mostra que, além da infecção direta do feto, o zika pode afetar proteínas produzidas na placenta, que levam a danos para o desenvolvimento do sistema nervoso fetal”, esclarece Paes.

Resposta à sociedade

Entre 2015 e 2016, o vírus zika provocou quase três mil casos de síndrome congênita, incluindo microcefalia e outras malformações, além de óbitos de fetos e recém-nascidos. Com a queda progressiva no número de casos, foi declarado o fim da emergência de saúde pública, mas a doença não desapareceu. Segundo o Ministério da Saúde, novos casos continuam ocorrendo de forma sistemática no país. Além disso, especialistas apontam que surtos podem ocorrer no futuro.

“Em 2015, observamos a rápida disseminação do zika no território nacional e a situação das gestantes que receberam a notícia sobre a síndrome congênita e tiveram que cuidar de bebês com sequelas. Isso foi muito impactante e nos fez refletir sobre como a comunidade científica poderia saber tão pouco sobre essa doença. Enquanto grupo de pesquisa que já trabalha com arbovírus, nos dedicamos a esclarecer a patogênese desse agravo, que até então era pouco elucidada”, declara Kíssila.

“Estabelecer o perfil da infecção e da resposta imune causadas pelo zika na placenta é uma base importante para a detecção de biomarcadores plasmáticos e o desenvolvimento de medicamentos e vacinas, assim como para outros estudos que visem esclarecer como a doença ocorre. Assim, esperamos contribuir, junto com toda comunidade científica, para minimizar os danos à população que ainda sofre com a doença”, conclui Paes.

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