A catapora é uma doença típica
da infância que, na maioria dos casos, evolui de forma benigna e os sintomas
desaparecem em até 10 dias. Seu agente causador, contudo, o vírus Varicella
zoster, permanece para sempre no organismo. Em alguns casos, pode voltar a
incomodar depois de anos, provocando uma nova doença conhecida como
herpes-zóster.
Em artigo publicado no The
Journal of Neuroscience, pesquisadores da USP mostram papel da citocina TNF no
surgimento da neuralgia herpética. Descoberta abre caminho para novas
abordagens terapêuticas (Varicella zoster/Wikimedia Commons)
Um dos primeiros e mais
incômodos sintomas de herpes zoster é uma dor intensa e incessante conhecida
como neuralgia, que afeta principalmente os nervos da região torácica, mas
também da região cervical, do nervo trigêmeo (na face) e da lombar. A sensação
dolorosa pode vir acompanhada de parestesia (sensações de frio, calor,
formigamento ou pressão sem estímulo causador), ardor e coceira. O quadro
clínico costuma evoluir para lesões localizadas da pele.
Os mecanismos imunológicos
desencadeados pelo vírus quando ele é reativado, que alteram o funcionamento
dos neurônios sensitivos e resultam em neuralgia herpética, foram descritos por
pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) em um artigo publicado
no The Journal of Neuroscience. A descoberta, segundo os autores,
possibilita a busca de novas terapias que, além de combater a dor aguda, podem
impedir que ela se torne crônica – condição conhecida como neuralgia
pós-herpética.
A investigação foi conduzida
no âmbito do Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias (CRID http://cepid.fapesp.br/centro/20/),
um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) apoiados pela FAPESP.
“O tratamento para a neuralgia
herpética, atualmente, é feito com medicamentos anti-inflamatórios do tipo
corticoide. Embora sejam eficazes para eliminar os sintomas, podem prejudicar o
controle da infecção, pois são imunossupressores. Resultados de nosso trabalho
sugerem que terapias capazes de bloquear a ação de um mediador inflamatório
conhecido como TNF [fator de necrose tumoral] poderia agir de forma mais
seletiva e eficaz”, afirmou Thiago Cunha, professor da Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto (FMRP), da USP, e coautor do artigo.
Segundo o pesquisador, a maior
parte da população mundial é portadora do vírus Varicella zoster,
que costuma se alojar nos gânglios nervosos, onde estão localizados os corpos
dos neurônios sensitivos que se projetam para as diferentes partes do corpo.
Por motivos ainda não totalmente compreendidos – mas que certamente envolvem
uma queda na imunidade – ocorre em algumas pessoas a reativação do vírus,
causando inflamação no gânglio. O problema é mais comum em pessoas com mais de
60 anos.
“Até que as lesões na pele
apareçam, o que costuma demorar entre cinco e 10 dias até que o vírus seja
transportado ao longo do nervo, o único sintoma do herpes-zóster é a neuralgia.
Isso torna o diagnóstico difícil”, comentou Cunha.
Novo modelo
Uma das contribuições do
trabalho desenvolvido no CRID foi a validação de um modelo animal para o estudo
dos mecanismos moleculares envolvidos no surgimento da neuralgia herpética.
Como o Varicella zoster (HZ) não infecta camundongos, o grupo
usou nos experimentos um microrganismo aparentado, o vírus da herpes simples
tipo 1 (HSV-1), que em seres humanos pode causar feridas labiais e genitais.
“No camundongo, o HSV-1 induz
dor e lesões na pele, um quadro muito similar ao herpes-zóster. Usamos esse
modelo para caracterizar os mecanismos imunológicos desencadeados pelo vírus no
gânglio da raiz dorsal, que fica próximo à medula espinal”, contou Cunha.
Após uma série de
experimentos in vitro e in vivo, que envolveram
animais “selvagens” (sem modificação genética) e também roedores geneticamente
modificados para não expressar determinadas moléculas que participam da
resposta imune ou então para expressar células fluorescentes possíveis de serem
rastreadas, o grupo formulou uma teoria sobre o que acontece nos gânglios
nervosos quando o vírus HZ é reativado.
De acordo com os
pesquisadores, células do sistema imune, particularmente macrófagos e
neutrófilos, são atraídas para o tecido nervoso e começam a liberar mediadores
inflamatórios (citocinas) na tentativa de eliminar o patógeno.
Uma dessas citocinas inflamatórias
– conhecida como TNF – se liga a uma proteína (um receptor próprio para TNF)
existente na membrana das chamadas células-satélites, que funcionam como
auxiliares do neurônio e têm a função de controlar os níveis de potássio no
entorno da célula nervosa.
Quando o receptor de TNF é
ativado pela citocina, a expressão de uma outra proteína é reduzida: a Kir4.1,
que atua como um canal para a passagem de íons de potássio para dentro da
célula-satélite.
“Quando o neurônio se
despolariza [liberando um impulso nervoso], o potássio sai do meio intracelular
para o extracelular. Para manter o equilíbrio químico no local, o excesso de
potássio deve entrar na célula-satélite e isso ocorre pelo canal Kir4.1”,
explicou Cunha.
Resultados dos experimentos
feitos na USP, porém, sugerem que, com a queda na expressão desse canal iônico
Kir4.1 induzida pelo TNF, o potássio começa a se acumular em torno do neurônio
e isso faz com que a célula nervosa fique com a excitabilidade maior do que
deveria.
“O neurônio fica mais sensível
a qualquer estímulo e pode até mesmo ocorrer dor espontânea. Não há lesão,
portanto, mas uma mudança nas características funcionais da célula. Em nosso
modelo nós avaliamos a resposta de camundongos a estímulos mecânicos”, contou
Cunha.
A análise comportamental dos
animais foi feita por uma técnica conhecida como filamentos de von Frey – um
conjunto de fios de náilon, com espessuras variadas, que são pressionados sobre
a pata do animal. Cada filamento representa uma força em gramas e indica o grau
de pressão que o animal consegue suportar antes de demonstrar desconforto.
“Enquanto um camundongo sadio
[grupo controle] só começa a esboçar reação com uma pressão de 1 grama, o
animal com neuralgia já sinaliza desconforto com pressão entre 0,04g e 0,08g.
Isso mostra hipersensibilidade. Porém, quando repetimos o experimento e
tratamos os roedores com anticorpos capazes de neutralizar o TNF, eles voltam a
responder como o controle”, contou o pesquisador.
Em um outro experimento,
roedores modificados para não expressar o receptor de TNF apresentaram menor
incidência de dor quando infectado pelo vírus em comparação com os animais
selvagens.
A investigação foi conduzida
durante o doutorado de Jaqueline Raymondi Silva, com apoio de
Bolsa da FAPESP e sob a orientação dos professores Thiago Mattar Cunha e
Fernando de Queiroz Cunha da FMRP-USP.
Nova abordagem
De acordo com Thiago Cunha,
dados da literatura científica indicam que pacientes que fazem uso de
medicamentos anti-TNF para o tratamento de doenças inflamatórias crônicas, como
artrite reumatoide, apresentam uma menor probabilidade de desenvolver a neuralgia
pós-herpética.
“Esse foi um dos fatores que
nos levou a desconfiar que o TNF teria um papel central no surgimento da dor”,
disse.
Além de testar essa classe de
drogas no tratamento de herpes-zóster, o grupo também vê a possibilidade de
investigar moléculas capazes de modular o canal iônico Kir4.1.
“Já há no mercado uma droga
capaz de fazer essa modulação de forma indireta, atuando sobre receptores
neuronais do tipo GABA-B. Chama-se baclofen e é usada principalmente como
relaxante muscular. É uma alternativa a ser testada”, avaliou Cunha.
O artigo Neuro-immune-glia interactions in the
sensory ganglia account for the development of acute herpetic neuralgia pode
ser lido em: http://www.jneurosci.org/content/early/2017/06/02/JNEUROSCI.2233-16.2017/tab-article-info.
Karina Toledo | Agência FAPESP
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