A Tinea capitis, uma infecção
fúngica cutânea dos cabelos/pelos da cabeça, é causada no Brasil principalmente
pelo fungo Microsporum canis, sendo comum em crianças de três a sete anos e
mais rara em adultos. Recentemente, a doença foi diagnosticada em dois menores
moradores da comunidade de Manguinhos, no Rio de Janeiro. Até então, nada de
anormal. Entretanto, pesquisadores Laboratório de Micologia do Instituto
Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz) ao investigarem mais
profundamente o caso, perceberam que a Tinea capitis nesses pacientes era
proveniente do fungo Microsporum audouinii, comum em países da África, e agora
relatado pela primeira vez na literatura científica publicada na América do
Sul.
A análise nas crianças
resultou no artigo Tinea capitis por Microsporum audouinii: relatos de casos e
revisão da literatura mundial publicada 2000-2016 que será publicado, em breve,
na revista Mycopathologia. Segundo Rodrigo Almeida-Paes, tecnologista do
Laboratório de Micologia e principal autor do trabalho, a “Tinea capitis é
comum e existe no mundo inteiro. Quando fizemos o exame nos dois estudantes,
aparentemente esperávamos encontrar o M. canis, mas fazendo a investigação,
tanto a nível de morfologia do fungo quanto a nível molecular, percebemos que o
agente causador era o M. audouinii, que até então não havia informe dele no
Brasil ou em outros países da América do Sul”, disse.
Confira o artigo, em inglês:
https://link.springer.com/article/10.1007%2Fs11046-017-0181-1
Rodrigo destacou que, na
literatura científica, a maioria dos informes são provenientes da África, e
quando se encontram notícias em outros países da Europa ou na Austrália, por
exemplo, geralmente decorrem de alguma família que viajou para o continente
africano e voltou para seu país de origem com a doença. “Não é o caso desses
dois moradores de Manguinhos. Eles nunca foram à África. Então, a gente
acredita que esse fungo esteja presente no Brasil, mas não cremos que ele tenha
sido isolado pela primeira vez agora. É bem possível confundir o M. canis com o
M. audouinii. Se não tivermos profissionais atentos para perceber as
diferenças, um acaba se passando pelo outro. E há também o problema da
notificação. Essa não é uma doença de notificação compulsória. Pode ser que
haja algum laboratório que já tenha isolado essa espécie, mas que nunca a
reportou ou publicou algo em nossa literatura. Nos papers disponíveis, esse
primeiro caso relatado foi feito por nós do Laboratório de Micologia do INI”,
informou o pesquisador.
Os sintomas são exatamente os
mesmos para o M. canis e o M. audouinii, o que muda é o agente etiológico. As
pessoas infectadas têm perda de cabelo em área localizada, couro cabeludo
avermelhado e inflamado e coceira. Uma diferenciação importante entre elas é
que as espécies são transmitidas por vias diferentes. Enquanto o M. canis é
transmitido a partir de um animal infectado, sendo mais comum o gato ou
cachorro, o M. audouinii pode decorrer de pessoa a pessoa. O tratamento mais
indicado para a Tinea capitis é a adoção de comprimidos de griseofulvina, por
trazer bons resultados a um baixo custo. Também podem ser utilizados a
terbinafina, o itraconazol ou o fluconazol. Não é recomendado o uso de pomadas
antifúngicas, uma vez que a ingestão oral dos medicamentos comprovou ser mais
eficiente para a cura dessa infecção fúngica cutânea.
O pesquisador contou ainda que
“como você tem fontes de transmissão diferentes, a profilaxia também é
diferente para essas infecções. Enquanto no M. canis é necessário avaliar toda
a questão dos cães e gatos que estão nas redondezas das pessoas, na infecção
pelo M. audouinii é mais imperativo que se faça o rastreio não nos animais, mas
sim nas pessoas. E como são crianças, você tem que investigar a turma delas no
colégio ou na creche. Então a dinâmica de prevenção e controle é diferente,
dependendo do agente causador”.
Os dois pacientes de
Manguinhos foram atendidos por uma dermatologista do Ambulatório Souza Araújo,
do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), e encaminhados para o Laboratório de
Micologia do INI para a realização do diagnóstico. Os fungos foram
classificados como M. audouinii por visualização de estruturas específicas da
espécie, incluindo: hifas pectinadas, clamidoconídios e macroconidios
fusiformes, crescimento com pigmento marrom característico em grãos de arroz e
através do sequenciamento de DNA da região ITS. “Aqui nós coletamos o material
dessas crianças, isolamos e identificamos o tipo de fungo. O trabalho finalizou
agora com o aceite para publicação do artigo, mas o evento do atendimento
ocorreu no final de 2014”, lembrou Rodrigo.
“Para a redação do trabalho,
todas as infecções de M. audouinii descritas neste século foram revisadas e
esse é o primeiro caso na literatura desta espécie na América do Sul. A
identificação errada de M. audouinii com M. canis pode acontecer nessa área,
levando a dados errôneos sobre a ocorrência dessa espécie”, explicam os autores
no texto. Além de Rodrigo Almeida-Paes, o artigo Tinea capitis por Microsporum
audouinii: relatos de casos e revisão da literatura mundial publicada 2000-2016
conta com as participações de Fábio Brito-Santos, Maria Helena Galdino
Figueiredo-Carvalho e Rowena Alves Coelho, todos do Laboratório de Micologia do
INI/Fiocruz, e Anna Sales, do Ambulatório Souza Araújo, do IOC/Fiocruz.
Uma proposta levantada pela
equipe do Laboratório de Micologia do INI é, no futuro, entrar em contato com
os profissionais do Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria, da Escola
Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), que possui um melhor
acesso à comunidade de Manguinhos e assim fazer um trabalho para investigar se
as crianças dessa localidade estão tendo infecções por esse fungo ou se foram
apenas dois casos isolados. “A forma como isso aconteceu aqui com certeza
descarta a possibilidade de que o fungo tenha vindo da África. Nós acreditamos
que ele esteja aqui, mas que não foi reportado antes por conta da falta de
expertise. Seria interessante alertar os profissionais que trabalham em
laboratórios para estarem atentos a essa nova espécie e os médicos pela questão
da prevenção da ocorrência de novos casos, prestando atenção se são causados
por M. canis ou M. audouinii”, encerrou o pesquisador.
Antonio Fuchs (INI/Fiocruz)
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