O mais completo levantamento
da diversidade genética dos vírus da hepatite B já realizado no Brasil mostra
que a pluralidade de origens da população brasileira se reflete também nos
microrganismos que circulam no país. Liderado por pesquisadores do Instituto
Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), o estudo é resultado da parceria entre onze
laboratórios e instituições de pesquisa de todas as regiões, com apoio do
Ministério da Saúde. Mais de mil amostras foram analisadas, referentes a casos
crônicos de hepatite B registrados em mais de cem cidades de 24 estados e no
Distrito Federal. Os resultados apontam que os casos brasileiros estão
relacionados a sete dos dez genótipos do vírus da hepatite B identificados no
mundo. A distribuição das variantes virais muda significativamente de uma
região para outra e, até mesmo, de um estado para o outro. Os resultados foram
publicados na revista científica Journal of General Virology*.
Francisco Mello e Elisabeth
Lampe destacaram a colaboração entre os laboratórios para traçar um retrato
abrangente da circulação viral
Coordenadora do estudo, a
chefe do Laboratório de Hepatites Virais do IOC, Elisabeth Lampe, explica que
os vírus da hepatite B evoluíram junto com as populações humanas. Dessa forma,
a distribuição geográfica das diferentes variantes genéticas – nomeadas por
letras de A até J – está relacionada às origens das populações, sendo impactada
pelas migrações e pelos deslocamentos populacionais. “O Brasil apresenta um
cenário muito diferente dos outros países da América do Sul, onde o genótipo F
do vírus da hepatite B – mais associado às populações americanas nativas – é
predominante. No território brasileiro, vemos grande presença de genótipos
associados com populações europeias e africanas, e chama atenção a ampla
variação regional”, ressalta a pesquisadora.
Na literatura científica,
apenas um trabalho, realizado no Canadá, apontou a presença de oito genótipos
do vírus da hepatite B circulando em um mesmo país – um a mais do que o que
acaba de ser verificado no Brasil. “Em comum, temos dois países continentais, com
populações formadas por imigrantes de diferentes nacionalidades”, comenta
Francisco Mello, pesquisador do Laboratório de Hepatites Virais do IOC e
coautor do estudo. “No Brasil, conseguimos observar a presença de sete
genótipos virais em um único estado: São Paulo, que além de ser o estado mais
populoso da federação é formado por diversas comunidades de imigrantes e atrai
um grande fluxo de visitantes internacionais”, completa.
O Laboratório de Hepatites
Virais do IOC atua como referência nacional em Hepatites Virais junto ao
Ministério da Saúde, e o esforço para traçar o mapa da diversidade genética do
vírus da hepatite B no país foi realizado em resposta a uma demanda do
Departamento de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), Aids e Hepatites
Virais. Estudos anteriores traziam dados limitados a algumas regiões do país e
o trabalho mais abrangente produzido até então continha amostras de apenas nove
estados – agora apenas Piauí e Rio Grande do Norte não foram incluídos na
pesquisa. Para realizar o levantamento, os cientistas estabeleceram uma rede
chamada de Grupo Brasileiro de Pesquisa em Hepatite B, com a participação de
nove laboratórios públicos, com representação das cinco regiões do Brasil. Com
financiamento do Ministério da Saúde, as unidades foram equipadas e receberam
treinamento para realizar os testes de genotipagem que permitiram construir o
mapa nacional de circulação do vírus. Em sete estados, esta é a primeira vez
que os genótipos do vírus da hepatite B passam a ser conhecidos: no Amapá, Roraima,
Ceará, Paraíba, Sergipe e Espírito Santo este tipo de investigação nunca havia
sido realizado.
“Com essa grande colaboração,
conseguimos obter e analisar mais de mil amostras, não apenas das capitais, mas
também de dezenas de cidades do interior. Em grande medida, a origem das
amostras reflete a distribuição da população brasileira no território nacional.
Por isso, obtivemos um mapeamento abrangente e representativo da distribuição
geográfica dos vírus da hepatite B”, destaca Elisabeth.
Genótipos predominantes
Identificado em quase 59% dos
casos analisados, o genótipo A do vírus da hepatite B foi o mais frequente no
Brasil. Com perfil de distribuição considerado global, essa variante viral é
encontrada com mais frequência no Norte da Europa, América do Norte e África
Subsaariana, e foi predominante na maioria dos estados do Sudeste, Nordeste,
Norte e Centro-Oeste. Em segundo lugar, o genótipo D foi detectado em 23% dos
casos no país. No entanto, essa variante viral – que também apresenta
distribuição global, mas é associada principalmente com populações da Europa,
Mediterrâneo e Oriente Médio – foi majoritária na região Sul, respondendo por
cerca de 80% dos registros. Ligado às populações indígenas americanas, o
genótipo F foi o terceiro mais frequente no levantamento nacional, com 11% dos
casos. Porém, observando apenas o Nordeste, ficou em segundo lugar (cerca de
23% dos registros na região).
Com distribuição geográfica
internacional conhecidamente mais restrita, os vírus B, C, E e G foram
encontrados em baixo número de ocorrências. Associado à África Ocidental, o
genótipo E respondeu por 1,8% das infecções, enquanto o genótipo G –
identificado em alguns países das Américas e Europa – foi identificado em 1,3%.
Ambos ligados a populações asiáticas, os genótipos B e C alcançaram apenas 1%
dos casos analisados. “É interessante notar que, em São Paulo, esses genótipos
raros no país responderam por 12% das amostras, refletindo o caráter
cosmopolita do estado”, pontua Francisco. Um dos estados que tiveram o perfil
genético dos vírus mapeados pela primeira vez, o Ceará apresentou um resultado
surpreendente: foi o único do país a apresentar predominância do genótipo F,
identificado em aproximadamente 53% das infecções. “Historicamente, moradores
do Ceará se deslocam para áreas isoladas da região amazônica em busca de
trabalho, o que pode explicar um contato mais frequente com populações
indígenas e a maior presença dessa variante viral no estado”, acrescenta o
pesquisador.
Contribuição para a vigilância
Segundo os cientistas, o
mapeamento dos perfis genéticos dos vírus da hepatite B no Brasil deve
contribuir para o controle da doença no país. “Esses dados são importantes para
a chamada vigilância molecular, que é baseada na análise do genoma viral. Por
exemplo, a detecção da introdução ou da maior disseminação de determinada
variante viral em uma região pode indicar a necessidade de reforço nas medidas
de prevenção da doença, especialmente a vacinação”, explica Elisabeth. Ela
afirma também que a relação da variabilidade genética dos vírus com a
progressão da doença tem sido investigada em diversos estudos. “Algumas
pesquisas apontam que o genótipo viral pode influenciar no desenvolvimento de
formas crônicas da hepatite B e na resposta ao tratamento. Até o momento, os
dados não são suficientes para justificar alterações nas condutas terapêuticas,
mas o conhecimento sobre a diversidade genética dos vírus no Brasil pode ter
ainda mais aplicações no futuro”, completa.
O vírus da hepatite B é
transmitido principalmente em relações sexuais. Além disso, o contágio pode
ocorrer por via sanguínea, incluindo compartilhamento de seringas, agulhas,
lâminas de barbear, alicates de unha e outros objetos que furam ou cortam. A
infecção também pode ser passada da mãe para o filho, durante a gestação, o
parto ou a amamentação. O vírus afeta principalmente o fígado e a maioria dos
pacientes apresenta quadros agudos, que podem ser assintomáticos ou ter
sintomas como enjoo, vômitos, dor abdominal, pele e olhos amarelados. No
entanto, 5% a 10% das pessoas infectadas evoluem para formas crônicas da
doença, com duração maior do que seis meses e possibilidade de complicações
como cirrose e câncer no fígado.
Dia Mundial de Luta
A data de 28 de julho é
declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como Dia Mundial de Luta
contra as Hepatites Virais, com o objetivo de aumentar a conscientização entre
a população e o engajamento dos países no enfrentamento destas doenças. Segundo
o Ministério da Saúde, no ano passado, foram diagnosticados 42,8 mil novos
casos de hepatites virais no Brasil, sendo aproximadamente 14 mil casos de
hepatite B. Elisabeth destaca que o diagnóstico tardio é um dos desafios no
enfrentamento do agravo. “Na maioria dos casos, a hepatite B é uma doença
silenciosa, que não apresenta sintomas antes do desenvolvimento das
complicações crônicas. Por isso, é fundamental realizar o teste, que é
oferecido gratuitamente no Sistema Único de Saúde (SUS)”, enfatiza Elisabeth.
Os cientistas ressaltam que a
infectividade do vírus da hepatite B é maior que a do HIV, mas é possível
evitar a doença com a vacinação e outras medidas de proteção. “Atualmente, a
vacina contra hepatite B faz parte do calendário de imunização infantil e está
disponível para toda a população até 49 anos nos postos de saúde. Portanto, é
fundamental que todos procurem se vacinar”, afirma Francisco. Usar camisinha em
todas as relações sexuais e não compartilhar objetos de uso pessoal, como
lâminas de barbear e depilar, escovas de dente, material de manicure e pedicure,
seringas e agulhas são outras ações importantes para prevenir o contágio. Os
exames para detectar a infecção também devem ser realizados no pré-natal e, em
caso positivo, há recomendações médicas especiais para o parto e a amamentação
com objetivo de evitar a transmissão para o bebê.
*Artigo: Lampe et al. Nationwide overview of the
distribution of hepatitis B virus genotypes in Brazil: a 1000-sample
multicentre study. Journal of General Virology 2017; 98:
1389-1398
Maíra Menezes, Foto: Gutemberg
Brito - IOC/Fiocruz
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