Incipiente no Brasil,
movimento antivacina cresce em países da Europa e nos EUA
Bondes tombados, trilhos
arrancados, calçamentos destruídos, além de 30 mortos, 110 feridos e cerca de
mil detidos: no início do século XX, a falta de informação fez com que um grupo
de pessoas no Rio de Janeiro literalmente se rebelasse contra a vacina que
combatia a varíola, doença que àquela altura vinha causando milhares de mortes
por ano. O episódio é registrado na história do Brasil como a Revolta da
Vacina. Na época, o acesso restrito da população ao conhecimento sobre como a
substância agia no corpo, aliada a uma adesão imposta pelo governo, provocaram
insegurança e, consequentemente, a insurreição.
Mais de cem anos depois,
parece que o excesso de informação, ironicamente, está gerando a mesma
desconfiança. Nos Estados Unidos e na Europa, vem se fortalecendo um movimento
antivacina, que é, inclusive, responsabilizado por surtos recentes de sarampo
na Alemanha, Portugal e Itália. Nesta última, por exemplo, das 1.600 pessoas
que pegaram sarampo em 2017, 88% não tinham tomado nenhuma dose da vacina.
O Brasil também tem seus
representantes no movimento. E autoridades da área de saúde alertam que a não
vacinação – seja por desconfiança da eficácia da vacina ou por negligência em
relação às indicações de imunização – pode acarretar um grave problema de saúde
pública.
A questão da postura
antivacina é que ela acarreta riscos não só individuais, mas coletivos, como
observa a infectologista e professora de medicina da UFMG Marise Fonseca. “Nós
temos um programa no serviço público de saúde muito importante, forte, atual. O
Ministério da Saúde tem metas de imunização justamente para proteger o
indivíduo e a comunidade como um todo. Se essa meta não é alcançada, não se
consegue a proteção em rebanho, ou seja, se um grupo de pessoas desestimula,
amedronta as pessoas com relação às vacinas, a cobertura baixa e a chance de o
agente infeccioso reaparecer e circular é muito maior. É o que estamos vendo na
Europa com o caso do sarampo”, explica.
A vacina, segundo a
infectologista, é o recurso que mais impactou positivamente a saúde pública,
principalmente na questão da mortalidade infantil, e não aderir à vacinação
traz implicações sobretudo para as camadas mais desfavorecidas da sociedade.
“Uma pessoa saudável e bem nutrida que não se vacinou contra hepatite B, por exemplo,
pode ter contato com o vírus selvagem (que não foi enfraquecido para ser
inoculado) e conseguir que seu organismo se i<CW-42>munize sozinho, mas
enquanto isso acontece ela estará infectada e será um transmissor. Se nesse
período ela tiver contato com uma criança de condição socioeconômica ruim, que
estiver mal nutrida, ela pode até morrer”, afirma. “É como quando alguém que
opta por beber e dirigir: não põe só a própria saúde em risco, mas também a dos
outros”.
Causas
A disseminação de informações
do movimento antivacina ocorre principalmente em grupos de pais nas redes
sociais. Grupos no Facebook no Brasil, hoje, contam com mais de 13 mil
participantes. Nesses espaços, compartilham textos publicados em blogs e sites
de origem controversa, muitos deles de outros países e em inglês, sobre as
supostas reações às vacinas, tais como danos cerebrais e até autismo.
O Pampulha tentou
fazer contato com membros de um desses grupos no Facebook, que tem cerca de
6.000 membros. Mas o post feito pela repórter em busca de voluntários com quem
conversar não foi aceito e ela foi banida do grupo – os meios de comunicação
tradicionais são considerados aliados do pensamento pró-vacina. Além disso,
adeptos dessa ideologia não costumam se identificar por medo de serem denunciados
ao Conselho Tutelar.
Já há algum tempo, as
autoridades vêm observando essas mobilizações com receio. E elas não
necessariamente acontecem entre pessoas com baixo nível de instrução. Uma
pesquisa encomendada pelo Ministério da Saúde em 2014 detectou que a média da
vacinação no Brasil era de 81,4%, enquanto que na classe A era de 76,3%.
No fim de maio, o médico
Dráuzio Varella, criticou duramente essas pessoas em sua coluna na “Folha de
S.Paulo”. “É um contingente formado, sobretudo, por pessoas que tiveram acesso
a escolas de qualidade e às melhores fontes de informação, mas acreditam
piamente em especulações estapafúrdias sobre os possíveis malefícios da
vacinação. (...) Essas sumidades têm todo o direito de discordar dos médicos e
dos avanços científicos, mas deveriam ser coerentes. Por que não aconselham os
filhos a fumar? As filhas a fazer sexo sem proteção? Por que não amamentam os
recém-nascidos com mamadeiras e leite em pó em vez de oferecer-lhes o seio
materno, por pelo menos seis meses, como recomenda o mesmo Ministério da Saúde
que vacina as crianças?”, disse.
O Ministério da Saúde também
constatou que, no ano passado, a cobertura da segunda dose da vacina tríplice
viral, que protege contra sarampo, caxumba e rubéola, teve adesão de apenas
76,7% do público-alvo. Além disso, a cobertura vacinal está abaixo do esperado
em pelo menos seis vacinas – hepatite A, rotavírus, influenza, HPV,
poliomielite, pentavalente e meningocócica C.
A coordenadora do Programa
Nacional de Imunização do Ministério da Saúde, Carla Domingues ressalta que não
bastam apenas os esforços do Governo Federal. “Estados e municípios têm papel
fundamental na vigilância dos dados de suas salas de vacinação para que, quando
observada uma tendência de queda, avaliem os motivos e trabalhem estimulando a
vacinação da população”, afirma. “Atualmente, são disponibilizadas pela rede
pública de saúde, de todo o país, cerca de 300 milhões de doses de
imunobiológicos ao ano, para combater mais de 20 doenças, em diversas faixas
etárias”.
Processo
Confiável Todas as
vacinas ofertadas no Sistema Único de Saúde são seguras e passam por um
processo rigoroso de avaliação de qualidade, obedecendo a critérios
padronizados pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Processo Após aprovação
em testes de controle do laboratório produtor, cada lote de vacina é submetido
à análise no Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde
(INCQS).
Critério Desde 1983, os
lotes por amostragem de imunobiológicos adquiridos pelos programas oficiais de
imunização vêm sendo analisados, garantindo sua segurança, potência e
estabilidade, antes de serem utilizados na população.
Fonte: Carla Domingues,
coordenadora do PNI
Avanço
Pesquisa A maior parte
das vacinas em uso foi desenvolvida de forma empírica, ou seja, com metodologia
baseada em tentativa e erro e sem a compreensão de como funcionam. Pesquisa em
curso na USP, porém, busca entender melhor esses mecanismos e desenvolver
melhores compostos (ou até novos), para doenças ainda sem vacinação.
Pistas Um dos responsáveis
pelo estudo, o professor Helder Nakaya, diz que a meta é entender os processos
que operam a nível molecular. “A maioria funciona inativando ou atenuando o
agente, o que deu certo para doenças como malária, coqueluche, rubéola, mas não
para outras, como malária, dengue, HIV. A pesquisa tenta fornecer pistas mais
detalhadas do que ocorre justamente para melhorar a resposta imunológica”, diz.
Proporção Nakaya ressalta
que na comunidade científica a proporção de detratores da vacina é absurdamente
inferior à de defensores. “Há quem acredite que há um racha, mas os que são
contra são uma parcela insignificante”.
Risco da doença é mais grave
O fotógrafo Jorge (nome
fictício), 57, há muito é crítico da medicina tradicional alopata. Foi por isso
que, quando sua filha, que hoje tem 22 anos, nasceu, ele e a ex-esposa optaram
por não vaciná-la. “Sempre questionei essa medicina que deseja extirpar a
doença e não tratar o doente. Ela, a meu ver, não quer que as pessoas se
fortaleçam e tenham boa saúde, pois assim não teriam como vender mais
medicamentos, vacinas etc.”, diz.
Das previstas no calendário
nacional de vacinação, deram à filha somente a que previne a poliomielite, por
considerarem a doença mais perigosa, incapacitante. Mas, em geral, preferem que
a prevenção seja feita de outra forma. “A melhor maneira de se cuidar, de ter
boa saúde, é tratando bem do seu corpo, sua mente, seu espírito: boa
alimentação, sono, exercícios físicos, meditação”, afirma. “Quando há um
desequilíbrio e adoeço, sei que são apenas sintomas de algo mais profundo
(raiva, tristeza, intolerância, rigidez em excesso, mau humor, impulsividade
desmedida...). Então, nesse caso, procuro a homeopatia, que irá tratar desses
sinais mais profundos”.
O homeopata com quem Jorge se
trata, Antonio Carlos Gonçalves da Cruz, afirma que não é contra vacina, mas que
ela não se encaixa na forma que a homeopatia enxerga a saúde. “Eu não me
considero contra a vacina, mas também não sou a favor. Há casos em que ela se
aplica e outros que não”, diz. “A homeopatia se baseia na experiência, mas
experiência na saúde e não na doença. Essa é a grande diferença, a experiência
da ciência é na doença e feita nas massas. Nós tratamos os indivíduos, mas a
vacina é deduzida da experiência da doença que tratará as massas. E não é
possível produzir uma vacina homeopática porque ela não considera as
individualidades. Ausência de doença não necessariamente é saúde”.
Oposição parcial
A professora aposentada Maria
Câmara, 62, não é contra vacinas, mas decidiu que não vai tomar a da gripe,
pois não a considera suficientemente desenvolvida. “Sei que contestar vacina é
coisa de pessoas que não têm conhecimento e sei da importância das vacinas em
geral, mas na vacina contra gripe, cujo grupo de risco eu faço parte, eu não
confio. Já vi muitas pessoas terem reações adversas a ela, inclusive meu pai,
que tem 88 anos e em geral é muito saudável, mas quase foi parar na UTI após
tomá-la”, conta.
Ciclos
Os efeitos colaterais de
determinadas vacinas e até riscos, em alguns casos, são uma realidade, como
observa a infectologista e professora da Faculdade de Medicina da UFMG Marise
Fonseca. “Algumas delas têm, sim, contraindicações. A da gripe, por exemplo,
não pode ser aplicada em quem tem alergia severa a ovo. Mas em geral os efeitos
adversos são raros. Exceto em situações muito específicas, o risco de contrair
a doença é muito maior do que o risco imposto pela vacina”, diz. Ela cita o
caso da primeira versão da vacina do rotavírus que foi tirada de circulação
após a constatação de que provocava efeito adverso grave.
Há também quem acredite que a
concentração de muitas vacinas nos três primeiros meses da criança seja
problemática, o que a infectologista refuta. “Está comprovado que isso não traz
malefícios e é importante aproveitar a oportunidade da presença da criança no
serviço de saúde. A meningite, por exemplo, é um problema gravíssimo. Se
esperar o bebê crescer demais a bactéria circula, é arriscado”, explica. “Por
isso foram criadas várias vacinas combinadas, nas rotinas corridas que levamos
hoje, poderia acabar provocando a negligência das pessoas. Sem contar que
quanto menos intervenções, melhor”.
O professor da Faculdade de
Ciências Farmacêuticas da USP Helder Nakaya chama atenção para o fato de que as
pessoas que adotam essa postura estão preocupadas com a própria saúde e com a
dos filhos, é algo feito com a melhor das intenções. Isso torna ainda mais
capcioso o processo de refutação. Por outro lado, ele acredita que a humanidade
vive ciclos. “Quando as pessoas ficam protegidas, deixam de se vacinar por
conta da sensação de segurança. E aí a doença volta e elas começam a aceitar a
vacina de novo. Estamos num momento bom, por isso elas acham que não precisam”,
conclui.
Pelo mundo
Estados Unidos O avanço
dos movimentos antivacina em território norte-americano desperta a preocupação
do Centers for Disease Control and Prevention (Centros para o Controle e a
Prevenção de Doenças, ou CDC, na sigla em inglês). Segundo dados do órgão,
somente em 2015 foram registrados mais de 48,2 mil casos de coqueluche no país
– o maior índice desde 1955, 438 de caxumba e 189 de sarampo, todos preveníveis
por vacinas.
Itália Para o governo do
país, o grave surto de sarampo (1.603 casos no último ano) deve-se à força do
movimento antivacina que circula pelo território e o crescente número de
pessoas que se recusam a ser vacinadas. Inclusive, na tentativa de contornar a
epidemia, as regiões da Itália caminham para promulgar uma lei nacional que
torne a vacinação obrigatória.
Mapa interativo Um
relatório produzido em 2014 pelo Council of Foreign Relations, uma entidade
internacional voltada para a política e sediada em Nova York, deu origem a um
mapa interativo que mostra os surtos de doenças evitáveis por vacinas ao redor
do mundo de 2008 até os dias atuais. Constantemente atualizado, o mapa é
encabeçado por Laurie Garrett, uma especialista em saúde global que acredita
que os surtos de doenças como caxumba, sarampo e coqueluche estão relacionados
aos movimentos antivacina. Acesse o mapa em goo.gl/5LxvZe (em
inglês).
Origem do movimento antivacina
Foi no ano de 1998 que o
médico britânico Andrew Wakefield provocou celeuma em todo o mundo ao publicar,
na revista científica “The Lancet” um estudo no qual relacionava casos de
autismo a uma pane no sistema imunológico decorrente da administração da vacina
tríplice viral (contra caxumba, sarampo e rubéola). Wakefield partiu de um
grupo de 12 crianças portadoras de autismo, das quais oito teriam os primeiros
sintomas da síndrome duas semanas após terem tomado a vacina. O estudo aventava
a hipótese de os estímulos “excessivos” da vacina terem afetado o sistema
imunológico. Como consequência, uma inflamação do intestino teria levado
toxinas ao cérebro.
No entanto, investigações
apontaram que as crianças voluntárias do estudo haviam sido indicadas por um
escritório de advocacia que queria processar a indústria farmacêutica. Em 2010,
a “The Lancet” retirou o estudo de seu site. No mesmo ano, o Conselho Britânico
de Medicina cassou a licença de Wakefield. No entanto, a semente da dúvida já
havia sido plantada. Para se ter uma ideia, em 2013, nos EUA, o sarampo atingiu
189 pessoas, após estar erradicado há quase 15 anos. Vale lembrar que quase
todos os Estados norte-americanos permitem a isenção de vacinas em crianças se
a família alegar motivos religiosos.
Em 2014, o médico francês
Bernard Dalbergue, ex-funcionário do laboratório Merck, Sharp and Dohme (MSD)
publicou um livro revelando o que seriam as entranhas da indústria
farmacêutica, e apontando que algumas das vacinas em uso careciam de estudos
aprofundados. No entanto, foi acusado de querer se vingar da empresa após ser
demitido.
O professor da Faculdade de
Ciências Farmacêuticas da USP Helder Nakaya refuta a tese de que a indústria
farmacêutica exerceria lobby para pressionar as pessoas a se vacinarem. “O
interesse maior é em desenvolver medicamentos para tratar as doenças e não em
imunizar as pessoas para que a doença não aconteça. É menos lucrativo”, pontua.
Jessica Almeida
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