Um economista me contou, não faz
muito tempo, sobre sua surpresa ao notar a presença de uma figura destoante
durante uma discussão sobre custos de saúde realizada nos Estados Unidos. O
sujeito acompanhava os debates atentamente, mas parecia um estranho no ninho.
Nada de paletó, gravata nem qualquer outro sinal previsível no ambiente
corporativo da indústria da saúde.
“O cara parecia o Magnum”, me disse
ele. A referência é antiga, mas a comparação faz sentido. Sucesso da TV
americana nos anos 80, Magnum era uma série de ação sobre um ex-oficial da
inteligência americana que se tornara investigador particular.
O personagem era musculoso, usava
bigode, óculos escuros, boné, anelão. Tinha “cara” de policial, segundo a mais
estereotipada visão da profissão. Era interpretado por Tom Selleck. Sim, o
mesmo ator que na semana passada foi acusado de roubar água de um hidrante público na
Califórnia.
O ator Tom Selleck, interpretando o personagem Magnum (Foto: Everett
Collection)
Curioso, o economista puxou papo e
descobriu o que aquele sujeito estranho fazia ali. Ele era, de fato, um
policial. Trabalhava na divisão de investigação de crimes contra a
saúde do FBI, a agência federal americana. E como tinha trabalho!
No dia em que conversamos, o
economista se lembrou dessa história para reforçar a ideia de que o Brasil
precisava, com urgência, criar um grupo de investigadores dedicados
exclusivamente a esse tipo de crime.
Não é de hoje que as denúncias de
desvios de conduta, corrupção ou de roubo descarado dos poucos recursos da saúde
revoltam os brasileiros. O que faltava era admitir, de forma oficial, que a saúde
brasileira virou caso de polícia.
Isso aconteceu na semana passada.
Segundo o ministro da saúde Arthur Chioro, aPolícia Federal terá uma divisão
para apurar apenas crimes contra a saúde. O governo também enviará ao
Congresso um projeto de lei para criminalizar fraudes na prescrição e comércio
de dispositivos médicos implantáveis, como órteses e próteses.
Nos últimos anos, a máfia das
próteses foi denunciada por diversos veículos da imprensa. No Paraná, as
irregularidades deram origem a uma CPI na Assembleia Legislativa, mas o governo
federal só criou um grupo de trabalho para discutir o assunto em janeiro,
depois da contundente reportagem do programa Fantástico, da TV
Globo.
Os jornalistas denunciaram as fraudes
no comércio desses equipamentos em hospitais da rede pública e os métodos
questionáveis usados pelos fabricantes para estimular o uso (desnecessário, em
muitos casos) de seus produtos em instituições privadas.
Segundo o projeto de lei proposto
pelo Ministério da Saúde, a obtenção de lucro ou vantagem ilícita na venda, prescrição
ou uso desses produtos passa a ser crime. O governo também pretende monitorar o
mercado, por meio da padronização das nomenclaturas e de sistemas de informação
mais eficientes.
Essa é uma área que precisa de um choque
de transparência. Hoje ninguém sabe quanto valem os produtos. Nem mesmo os
hospitais, os planos de saúde, os governos e, muito menos, os pacientes.
Os distribuidores não têm tabela de
preço. De cada hospital, cobram um valor diferente. Esse sistema é um terreno
fértil para fraudes e um incentivo ao desperdício, como ÉPOCA contou nesta reportagem. Há casos em que o médico indica
ao hospital a empresa que fornece o material e, ao mesmo tempo, recebe dinheiro
do fabricante.
Do jeito como a saúde funciona no
Brasil, toda a estrutura se volta para incentivar as fraudes e o aumento de
custos. Quando o mercado não é capaz de resolver tantas falhas do próprio
sistema – como o caso da assimetria de informação que compromete a comparação
de preço e qualidade – cabe ao governo criar mecanismos de transparência e
incentivar a concorrência.
É preciso lançar luzes sobre esse
mercado doente e punir com rigor aqueles que fraudam descaradamente a saúde
brasileira. O que eu e você podemos fazer? Não silenciar diante dos desvios e
denunciá-los às autoridades competentes. Trabalho não faltará ao novo grupo da
Polícia Federal. O Magnum do FBI que o diga.
Revista Época: CRISTIANE SEGATTO
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