Destaques

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Projeto obtém avanço na busca por terapia para prevenir a síndrome congênita do zika

Maíra Menezes (IOC/Fiocruz)

Após cinco anos de pesquisas, um projeto liderado pela Fiocruz chegou a resultados encorajadores na busca de uma terapia para prevenir a síndrome congênita do zika. Em artigo publicado na revista científica internacional Antiviral Research, os autores constatam um intenso efeito protetor do sofosbuvir, antiviral atualmente indicado para o tratamento da hepatite C. Nos ensaios com macacos rhesus, que são considerados o modelo experimental mais próximo dos seres humanos, o medicamento impediu a transmissão do vírus Zika das mãe para os filhotes durante a gestação e evitou as malformações congênitas em 100% dos testes.

Testes confirmaram ação protetora e não apontaram toxicidade para os filhotes. A próxima etapa vai comparar placentas de macacos e humanos (Foto: Josué Damacena)

De acordo com o pesquisador do Laboratório de Desenvolvimento Tecnológico em Virologia do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e coordenador do estudo, Marcelo Alves Pinto, os achados em macacos são uma etapa fundamental para levar a terapia até os pacientes. “Esse trabalho começou a partir de estudos in vitro [em cultura de células], liderados pela Fiocruz, que mostraram atividade do sofosbuvir contra o zika. Mas, para ter certeza sobre o potencial da terapia, é preciso fazer testes no modelo que mais se assemelha ao ser humano, que é o modelo de macacos rhesus. O montante de resultados, com filhotes saudáveis nascidos de mães tratadas, indica que o sofosbuvir pode ser uma opção eficaz para prevenir a síndrome congênita do zika nos casos de gestantes que tenham contato com o vírus”, afirma o pesquisador.

A síndrome congênita do zika foi detectada no Brasil, em outubro de 2015, quando o país viveu surtos de microcefalia. Entre 2015 e 2016, período em que o agravo foi considerado uma emergência em saúde pública de importância internacional, quase três mil gestações foram afetadas pelo vírus no país, resultando em microcefalia e outras malformações, além de distúrbios neurológicos e óbitos de fetos e recém-nascidos. Nos anos seguintes, os registros caíram progressivamente, mas os cientistas alertam que o problema não desapareceu.

“As doenças infecciosas têm um ciclo. Quando ocorre uma epidemia maciça, como foi o caso da Zika, grande parte da população é infectada e adquire imunidade. Por isso, é preciso tempo para que exista novamente um contingente de pessoas suscetíveis. A síndrome congênita do zika é um problema muito grave. Continuam ocorrendo casos pontuais e pode acontecer um novo surto no futuro”, pontua a chefe do Laboratório de Desenvolvimento Tecnológico em Virologia do IOC e autora do estudo, Jaqueline Mendes de Oliveira.

Ao usar um medicamento aprovado para tratamento da hepatite C, a pesquisa aplicou uma estratégia conhecida como reposicionamento de medicamentos, que permite acelerar o desenvolvimento de terapias. Além de estudos anteriores em cultura de células e ratos, que mostraram ação contra o zika, os cientistas consideraram o perfil de segurança do fármaco. “O sofosbuvir tem como alvo uma região do genoma viral que é comum a diversos vírus e é usado com alta eficácia na hepatite C. Ainda não é um medicamento liberado para gestantes, mas existem estudos clínicos avaliando a terapia nesse grupo. Por isso, é uma alternativa viável. Considerando a possibilidade de efeito deletério do medicamento para o feto, existem dados na literatura que apontam para a segurança do uso em gestantes. No nosso trabalho, não observamos toxicidade”, ressalta a primeira autora do artigo, Noemi Gardinali, biotecnologista do Laboratório de Tecnologia Viral de Bio-Manguinhos.

Ação na placenta

A pesquisa avaliou oito macacas e seus filhotes. Os animais da espécie Macaca mulatta, popularmente conhecidos como macacos rhesus, foram inoculados na fase inicial da gestação com uma linhagem do vírus zika isolada no Espírito Santo em 2015, associada a casos de síndrome congênita. Os pesquisadores conduziram exames de saliva, sangue, urina e secreções vaginais, além de ultrassom nas macacas durante a gravidez. Após o parto, coletaram amostras da placenta, assim como sangue e tecidos dos filhotes.

A primeira etapa do trabalho teve o objetivo de confirmar que o zika causava, nos animais, os mesmos problemas observados nos seres humanos. Os dois primeiros casos estudados confirmaram a validade do modelo. O vírus foi detectado em amostras de sangue das mães, que também apresentaram sintomas da doença, como febre e manchas no corpo. Um dos filhotes desenvolveu um quadro grave de síndrome congênita e morreu logo após o parto. O outro nasceu sem alterações aparentes. Apesar dos desfechos diferentes, o zika foi encontrado em amostras de sangue ou tecidos de ambos os filhotes.

“O modelo reproduziu o que observamos na infecção humana. Existem bebês severamente afetados e outros que não apresentam lesões. Também há casos em que os danos se manifestam de forma tardia, ao longo do desenvolvimento infantil”, comenta Jaqueline.

Na etapa seguinte, os pesquisadores buscaram avaliar o impacto da terapia com sofosbuvir. Ao longo de dois anos, seis macacas gestantes foram incluídas no trabalho, alcançando o total de oito. Cinco foram tratadas logo após os primeiros sintomas da infecção, e uma não recebeu a medicação, levando para três o número de animais no grupo não tratado. Segundo os cientistas, o maior número de indivíduos no grupo submetido à terapia considerou a ética da pesquisa com animais, além da complexidade e custos do projeto. “Nos estudos com modelos experimentais, devemos sempre buscar reduzir o número de animais ao mínimo necessário”, destaca Jaqueline.

Mais um caso grave foi observado na ausência do tratamento, com morte fetal ainda durante a gestação e identificação de altos níveis virais no feto. Em comparação, nenhum registro de malformação ocorreu no grupo tratado. Três animais nasceram saudáveis e um feto, vítima de aborto após um acidente, não apresentava alterações. O zika não foi detectado nesses quatro filhotes. O quinto caso do grupo tratado foi considerado inconclusivo: uma macaca com endometriose e sinais de pré-eclampsia (um tipo de hipertensão arterial específico da gravidez) sofreu descolamento de placenta com hemorragia, resultando em aborto. O zika foi identificado no feto, mas é possível que a contaminação tenha ocorrido devido ao sangramento materno.

“O conjunto de dados do estudo, incluindo sorologia, viremia e exame histopatológico, é bastante significativo. As lesões observadas na placenta e no sistema nervoso central dos filhotes nos casos não tratados são muito sugestivas da inflamação provocada pelo zika”, afirma o pesquisador do Laboratório de Neurovirulência do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz), Renato Marchevsky.

O estudo apontou ainda que o sofosbuvir não elimina o vírus nas mães, mas sua ação na placenta pode explicar o sucesso da terapia. O órgão é responsável por ofertar nutrientes e oxigênio para o feto durante a gestação e funciona como uma barreira contra agentes infecciosos. Pesquisas anteriores haviam indicado que o Zika consegue romper essa proteção ao infectar as células do sistema imune placentário. “Olhando para as placentas, observamos que, nas mães tratadas, a taxa de infecção nestas células fica perto de zero, enquanto nas não tratadas, chega a 42%. A barreira placentária parece ser mais eficaz nas mães tratadas com sofosbuvir”, aponta Marcelo.

Próximos passos

Na próxima etapa da pesquisa, os cientistas pretendem comparar as placentas dos macacos com casos humanos em busca de novos conhecimentos sobre a dinâmica da infecção. As perspectivas para possíveis ensaios em pacientes estão em discussão. “Nossa pesquisa não apontou toxicidade, nem efeito teratogênico, e há dados que indicam que o sofosbuvir pode ser bem tolerado durante a gestação. Mas precisamos discutir com pesquisadores da área clínica sobre a possibilidade de estabelecer um protocolo para avaliação do tratamento em gestantes expostas ao zika, considerando que o medicamento pode reduzir o risco de malformações”, diz Marcelo.

Os autores destacam que a cooperação entre diferentes grupos de pesquisa da Fiocruz e colaboradores externos foi fundamental para a realização do estudo. Ao todo, 35 cientistas participaram do projeto. Liderado pelo IOC, o trabalho foi realizado em parceria com cinco unidades da Fiocruz: Bio-Manguinhos; Instituto de Ciência e Tecnologia em Biomodelos (ICTB); Serviço de Equivalência e Farmacocinética da Vice-Presidência de Produção e Inovação em Saúde (Sefar/VPPIS); e Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS). No IOC, além do Laboratório de Desenvolvimento Tecnológico em Virologia, participaram os Laboratórios de Patologia e de Biotecnologia e Fisiologia de Infecções Virais.

A pesquisa também teve colaboração do Centro de Diagnóstico Veterinário (Cevet) de Niterói, Universidade Federal do ABC (UFABC), Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Gestão da Inovação em Doenças Negligenciadas (INCT/IDN), Laboratórios Dr. Julio Moran, na Suíça, e Instituto de Medicina Tropical Bernhard Nocht, na Alemanha. Recursos da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde (Decit/MS) e Centro de Pesquisa de Desenvolvimento Internacional (IDRC), do Canadá, financiaram o projeto.

0 comentários:

Postar um comentário

Calendário Agenda