Após cinco anos de pesquisas,
um projeto liderado pela Fiocruz chegou a resultados encorajadores na
busca de uma terapia para prevenir a síndrome congênita do zika. Em artigo
publicado na revista científica internacional Antiviral Research, os
autores constatam um intenso efeito protetor do sofosbuvir, antiviral
atualmente indicado para o tratamento da hepatite C. Nos ensaios com macacos
rhesus, que são considerados o modelo experimental mais próximo dos seres
humanos, o medicamento impediu a transmissão do vírus Zika das mãe para os
filhotes durante a gestação e evitou as malformações congênitas em 100% dos
testes.
Testes confirmaram ação protetora e não apontaram toxicidade para os filhotes. A próxima etapa vai comparar placentas de macacos e humanos (Foto: Josué Damacena)
De acordo com o pesquisador do
Laboratório de Desenvolvimento Tecnológico em Virologia do Instituto Oswaldo
Cruz (IOC/Fiocruz) e coordenador do estudo, Marcelo Alves Pinto, os achados em
macacos são uma etapa fundamental para levar a terapia até os pacientes. “Esse
trabalho começou a partir de estudos in vitro [em cultura de
células], liderados pela Fiocruz, que mostraram atividade do sofosbuvir contra
o zika. Mas, para ter certeza sobre o potencial da terapia, é preciso fazer
testes no modelo que mais se assemelha ao ser humano, que é o modelo de macacos
rhesus. O montante de resultados, com filhotes saudáveis nascidos de mães
tratadas, indica que o sofosbuvir pode ser uma opção eficaz para prevenir a
síndrome congênita do zika nos casos de gestantes que tenham contato com o
vírus”, afirma o pesquisador.
A síndrome congênita do zika
foi detectada no Brasil, em outubro de 2015, quando o país viveu surtos de
microcefalia. Entre 2015 e 2016, período em que o agravo foi considerado uma
emergência em saúde pública de importância internacional, quase três mil
gestações foram afetadas pelo vírus no país, resultando em microcefalia e
outras malformações, além de distúrbios neurológicos e óbitos de fetos e
recém-nascidos. Nos anos seguintes, os registros caíram progressivamente, mas
os cientistas alertam que o problema não desapareceu.
“As doenças infecciosas têm um
ciclo. Quando ocorre uma epidemia maciça, como foi o caso da Zika, grande parte
da população é infectada e adquire imunidade. Por isso, é preciso tempo para
que exista novamente um contingente de pessoas suscetíveis. A síndrome
congênita do zika é um problema muito grave. Continuam ocorrendo casos pontuais
e pode acontecer um novo surto no futuro”, pontua a chefe do Laboratório de
Desenvolvimento Tecnológico em Virologia do IOC e autora do estudo, Jaqueline
Mendes de Oliveira.
Ao usar um medicamento
aprovado para tratamento da hepatite C, a pesquisa aplicou uma estratégia
conhecida como reposicionamento de medicamentos, que permite acelerar o
desenvolvimento de terapias. Além de estudos anteriores em cultura de células e
ratos, que mostraram ação contra o zika, os cientistas consideraram o perfil de
segurança do fármaco. “O sofosbuvir tem como alvo uma região do genoma viral
que é comum a diversos vírus e é usado com alta eficácia na hepatite C. Ainda
não é um medicamento liberado para gestantes, mas existem estudos clínicos
avaliando a terapia nesse grupo. Por isso, é uma alternativa viável.
Considerando a possibilidade de efeito deletério do medicamento para o feto,
existem dados na literatura que apontam para a segurança do uso em gestantes.
No nosso trabalho, não observamos toxicidade”, ressalta a primeira autora do
artigo, Noemi Gardinali, biotecnologista do Laboratório de Tecnologia Viral de
Bio-Manguinhos.
Ação na placenta
A pesquisa avaliou oito
macacas e seus filhotes. Os animais da espécie Macaca mulatta,
popularmente conhecidos como macacos rhesus, foram inoculados na fase inicial
da gestação com uma linhagem do vírus zika isolada no Espírito Santo em 2015,
associada a casos de síndrome congênita. Os pesquisadores conduziram exames de
saliva, sangue, urina e secreções vaginais, além de ultrassom nas macacas
durante a gravidez. Após o parto, coletaram amostras da placenta, assim como
sangue e tecidos dos filhotes.
A primeira etapa do trabalho
teve o objetivo de confirmar que o zika causava, nos animais, os mesmos
problemas observados nos seres humanos. Os dois primeiros casos estudados
confirmaram a validade do modelo. O vírus foi detectado em amostras de sangue
das mães, que também apresentaram sintomas da doença, como febre e manchas no
corpo. Um dos filhotes desenvolveu um quadro grave de síndrome congênita e
morreu logo após o parto. O outro nasceu sem alterações aparentes. Apesar dos
desfechos diferentes, o zika foi encontrado em amostras de sangue ou tecidos de
ambos os filhotes.
“O modelo reproduziu o que
observamos na infecção humana. Existem bebês severamente afetados e outros que
não apresentam lesões. Também há casos em que os danos se manifestam de forma
tardia, ao longo do desenvolvimento infantil”, comenta Jaqueline.
Na etapa seguinte, os
pesquisadores buscaram avaliar o impacto da terapia com sofosbuvir. Ao longo de
dois anos, seis macacas gestantes foram incluídas no trabalho, alcançando o total
de oito. Cinco foram tratadas logo após os primeiros sintomas da infecção, e
uma não recebeu a medicação, levando para três o número de animais no grupo não
tratado. Segundo os cientistas, o maior número de indivíduos no grupo submetido
à terapia considerou a ética da pesquisa com animais, além da complexidade e
custos do projeto. “Nos estudos com modelos experimentais, devemos sempre
buscar reduzir o número de animais ao mínimo necessário”, destaca Jaqueline.
Mais um caso grave foi
observado na ausência do tratamento, com morte fetal ainda durante a gestação e
identificação de altos níveis virais no feto. Em comparação, nenhum registro de
malformação ocorreu no grupo tratado. Três animais nasceram saudáveis e um
feto, vítima de aborto após um acidente, não apresentava alterações. O zika não
foi detectado nesses quatro filhotes. O quinto caso do grupo tratado foi
considerado inconclusivo: uma macaca com endometriose e sinais de pré-eclampsia
(um tipo de hipertensão arterial específico da gravidez) sofreu descolamento de
placenta com hemorragia, resultando em aborto. O zika foi identificado no feto,
mas é possível que a contaminação tenha ocorrido devido ao sangramento materno.
“O conjunto de dados do
estudo, incluindo sorologia, viremia e exame histopatológico, é bastante
significativo. As lesões observadas na placenta e no sistema nervoso central
dos filhotes nos casos não tratados são muito sugestivas da inflamação
provocada pelo zika”, afirma o pesquisador do Laboratório de Neurovirulência do
Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz), Renato
Marchevsky.
O estudo apontou ainda que o
sofosbuvir não elimina o vírus nas mães, mas sua ação na placenta pode explicar
o sucesso da terapia. O órgão é responsável por ofertar nutrientes e oxigênio
para o feto durante a gestação e funciona como uma barreira contra agentes
infecciosos. Pesquisas anteriores haviam indicado que o Zika consegue romper
essa proteção ao infectar as células do sistema imune placentário. “Olhando
para as placentas, observamos que, nas mães tratadas, a taxa de infecção nestas
células fica perto de zero, enquanto nas não tratadas, chega a 42%. A barreira
placentária parece ser mais eficaz nas mães tratadas com sofosbuvir”, aponta
Marcelo.
Próximos passos
Na próxima etapa da pesquisa,
os cientistas pretendem comparar as placentas dos macacos com casos humanos em
busca de novos conhecimentos sobre a dinâmica da infecção. As perspectivas para
possíveis ensaios em pacientes estão em discussão. “Nossa pesquisa não apontou
toxicidade, nem efeito teratogênico, e há dados que indicam que o sofosbuvir
pode ser bem tolerado durante a gestação. Mas precisamos discutir com
pesquisadores da área clínica sobre a possibilidade de estabelecer um protocolo
para avaliação do tratamento em gestantes expostas ao zika, considerando que o
medicamento pode reduzir o risco de malformações”, diz Marcelo.
Os autores destacam que a
cooperação entre diferentes grupos de pesquisa da Fiocruz e colaboradores
externos foi fundamental para a realização do estudo. Ao todo, 35 cientistas
participaram do projeto. Liderado pelo IOC, o trabalho foi realizado em
parceria com cinco unidades da Fiocruz: Bio-Manguinhos; Instituto de Ciência e
Tecnologia em Biomodelos (ICTB); Serviço de Equivalência e Farmacocinética da
Vice-Presidência de Produção e Inovação em Saúde (Sefar/VPPIS); e Centro de
Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS). No IOC, além do Laboratório de
Desenvolvimento Tecnológico em Virologia, participaram os Laboratórios de
Patologia e de Biotecnologia e Fisiologia de Infecções Virais.
A pesquisa também teve colaboração do Centro de Diagnóstico Veterinário (Cevet) de Niterói, Universidade Federal do ABC (UFABC), Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Gestão da Inovação em Doenças Negligenciadas (INCT/IDN), Laboratórios Dr. Julio Moran, na Suíça, e Instituto de Medicina Tropical Bernhard Nocht, na Alemanha. Recursos da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde (Decit/MS) e Centro de Pesquisa de Desenvolvimento Internacional (IDRC), do Canadá, financiaram o projeto.
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